A velha história dos muros (visíveis ou não)

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Durante o mês de junho deste ano, li mais uma notícia sobre muros. Há anos esse assunto me chama a atenção e também há anos guardo alguns dados e anoto referências a todo e qualquer tipo de muro — real ou ficcional, literal ou metafórico, visível ou invisível. No dia 5 de junho, o novo fato era a ordem de Donald Trump para a construção de um “muro ao redor da Casa Branca para garantir segurança” (GAZETA BRASIL, 2020), em razão dos protestos pela morte de George Floyd. Naquela ocasião, o medo e a insegurança do presidente foram ironizados por muitos, que fizeram questão de mencionar a ideia separatista de Trump em relação aos mexicanos, alguns anos antes. O objetivo do líder norte-americano é sempre o mesmo: tentar preservar um minimundo, que ele considera ideal e seguro, e banir os outros, que ele classifica como inimigos.

A iniciativa é egoísta e individualista. É certo que, de modo imediato, um muro garante alguma segurança, além de conforto e tranquilidade. Entretanto, como figura pública, o exemplo (positivo) deveria ser dado pelo presidente. Em vez disso, sua resposta é na maioria das vezes negativa — ao diálogo, à convivência, à interculturalidade, ao compartilhamento, à diversidade e à solidariedade. Assim como Trump, hoje, a maioria das pessoas padece desse mal. A cidade lá fora, em vez de ser vista como aliada, é considerada uma ameaça, porque, embora tenha sido “construída originalmente em nome da segurança, para proteger de invasores mal intencionados os que moram intramuros, tornou-se em nossa época ‘associada mais com o perigo do que com a segurança’” (BAUMAN, 1999, p. 55, grifo no original). Metonimicamente, a cidade representa os outros (humanos, como nós) e a nós mesmos. Apesar disso, como sintetiza Bauman: “O indivíduo é o pior inimigo do cidadão” (BAUMAN, 2001, p. 45).

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O muro em volta da Casa Branca multiplica-se, em nossa realidade cotidiana. Ele também está nos clubes, nos shoppings, nos condomínios, nas ruas fechadas, nos resorts e até nos parques temáticos. Todos esses espaços são construídos na tentativa de oferecer “o que nenhuma ‘realidade real’ externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança” (BAUMAN, 2001, p. 116, grifo no original). Como bolhas, em meio à malha urbana, marcada pelo caos e pela diferença, eles artificializam um espaço ideal de convivência, com “pouca ou nenhuma relação com o ritmo e o teor da vida diária que flui ‘fora dos portões’” (BAUMAN, 2001, p. 115, grifo no original). Portanto, esses círculos de convivência restrita alimentam a utopia, desabilitando a capacidade das pessoas para o enfrentamento de situações que envolvem assimetrias, riscos e dificuldades em geral. Conforme Sandra Pesavento, “a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares que não se hierarquizam, mas que se justapõe, compõem ou se contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros” (PESAVENTO, 1999, p. 9). Seguindo essa linha de pensamento, a criação de espaços especiais e assépticos, que oferecem uma zona confortável, livre de ameaças e perigos, funciona como um instrumento de alienação, inconsciente, de início, mas que depois se torna uma ação deliberada — pelo isolamento, pela irrealidade, mas contra a convivência não programada, e naturalmente imposta pelo espaço urbano.

Além disso, esses paraísos artificiais têm acesso restrito, definido pela classe social e pelo poder aquisitivo. Esses redutos são destinados aos “cidadãos consumidores, sem vestígios de pobreza e deterioração” (PINTAUDI; FRUGOLI JR., 1992, p. 77). Em essência, o medo e a insegurança estão por trás dessas minissociedades muradas: “A insegurança ambiente concentra-se no medo pela segurança pessoal; que por sua vez aguça ainda mais a figura ambígua e imprevisível do estranho. Estranho na rua, gatuno perto de casa… Alarmes contra assalto, bairros vigiados e patrulhados, condomínios fechados, tudo isso serve ao mesmo propósito: manter os estranhos afastados” (BAUMAN, 1999, p. 130-131).  Contudo, em um segundo momento, elas se transformam em símbolos — da intolerância, do preconceito e da exclusão.

Em 2017, o problema da construção de muros estava em ascensão. No mês de abril, o jornal El País ligava o alerta: “Depois da queda do Muro de Berlim, restavam apenas 11 deles no mundo. Atualmente, a cifra subiu para 70” (EL PAÍS, 2020). Dois meses depois, a Folha de S. Paulo reafirmava: “Das 17 barreiras físicas existentes em 2001, passamos para 70 hoje” (MAISONNAVE; ALMEIDA, 2017). Esses números desmascaram o pretenso efeito de globalidade, porque revelam o “blefe da unidade comunal” (BAUMAN, 2001, p. 221). Levantar muros, infelizmente, é uma ação esperada, tendo em vista o diagnóstico do comportamento e dos relacionamentos humanos, na sociedade atual: “Um impulso violento está sempre em ebulição sob a calma superfície da cooperação pacífica e amigável” (BAUMAN, 2001, p. 221).

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Cresci em Curitiba, capital do Paraná, e, por aqui, sempre foi frequente o debate sobre o separatismo dos estados da região sul do Brasil. A ideia é esquecida por anos, mas volta e meia ressurge, e às vezes com uma força inacreditável. Em uma dessas ocasiões, foram feitos até adesivos, que eram usados nos carros dos defensores da segregação. Eu nem tinha idade para assumir oficialmente uma posição, mas aquilo me parecia estranho e sem lógica. Minha mentalidade infantil apenas questionava: “Mas não somos um país?” Seguindo meu raciocínio, que era avesso à ideologia separatista, outros dois acontecimentos marcaram os anos 1980 e 1990: a queda do muro de Berlim, em 1989 (Fig. 1); e o fim do Apartheid, um pouco mais tarde, em 1991, na África do Sul.

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Figura 1: Berlim: antes e depois da queda do muro
Imagem disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/muro-de-berlim-antes-e-depois-da-queda_n1184281>

Em se tratando de muros, sem dúvida o mais impressionante deles é a muralha da China. As fontes divergem, mas podemos estabelecer que essa construção começou em torno do ano 200 a.C. e só foi finalizada no século XVI. A preocupação principal era defender os chineses dos invasores, durante as disputas pela rota da seda, o que resultou no monumento que conhecemos hoje e que alcança mais de 8 mil Km de extensão (Fig. 2):

Atualmente, as muralhas se proliferam, e surgem em uma época em que também aumentaram os êxodos, os deslocamentos e as diásporas. Temos as duas Coreias, o muro redivivo da Irlanda e as icônicas cisões entre Cisjordânia e Israel, EUA e México, Grécia e Turquia, Espanha e Marrocos… Citamos aqui apenas alguns exemplos, mas há dezenas deles, que nos lembram do paradoxo da globalização. Essa palavra, por si só, faz referência ao que é global, vendendo a ideia de um mundo homogêneo e sem fronteiras. No entanto, a globalização de nossa época produziu um efeito contrário. Segundo Bauman, ela “parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). Nesse sentido, o fenômeno alimentou a individualidade e, por meio da tecnologia digital, tornou as pessoas mais reclusas, privilegiando o ambiente privado e a solidão. Essa característica está intrinsecamente ligada ao universo virtual, afinal, as interfaces digitais anularam a necessidade do contato físico e alteraram significativamente as relações interpessoais.

As telas do computador e do smartphone garantem a proximidade virtual, que, diferentemente da proximidade física, face a face, pode ser mais facilmente controlada e administrada. Qualquer tipo de conflito virtual não exige diálogo, negociações ou pedido de desculpas. Basta apertar um botão, e o outro (junto com todos os problemas) desaparece. Abstraímos, apenas com um clique, a alteridade e a sociedade à nossa volta. O que sobra é nosso ego, autocentrado e ensimesmado. Sendo assim, não é demais afirmar que as telas de hoje são novos tipos de muros — transparentes quando queremos, mas intransponíveis.

Longe de incentivar os deslocamentos físicos e as migrações reais, o mundo digital garante a mobilidade e o apagamento das fronteiras somente na Grande Rede, que oferece um mundo alternativo e ideal, como se fosse o universo paralelo ou a terra dois, das atuais séries de super-heróis. Aliás, falando em séries, a arte imita a vida e, por isso, não são raras as histórias que dividem os personagens, colocando-os em lados opostos de um muro.  Em boa parte das produções de cinema e de streaming, o muro segrega e aprisiona, como é o caso de Colony (EUA, 2016) (Fig. 3), Guerra mundial Z (EUA, 2013) (Fig. 4), Meu namorado é um zumbi (EUA, 2013), Divergente (EUA, 2014), Maze Runner (EUA, 2014), The rain (DK, 2018), Zoo (EUA, 20150, entre outras.

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Figura 3: Muro da série Colony
Imagem disponível em: <https://es.fanpop.com/clubs/colony-tv-series/images/40023941/title/colony-wall-photo>
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 Figura 4: Muro do filme Guerra mundial Z
Imagem disponível em: <https://sites.google.com/site/mejorespeliculasdezombies/guerra-mundial-z—sinopsis>

Além dos muros físicos, e visíveis, há aqueles imateriais, que são sentidos, sem serem vistos. Em Once upon a time (EUA, 2011), por exemplo, o muro não é visível, mas todos que tentam passar de certo ponto são impedidos de continuar, como se naquele local houvesse uma força sobrenatural, controlando o acesso. Esse mesmo fenômeno aparece em outras séries, tais como: Under the dome (EUA, 2013) (Fig. 5), Wayward Pines (EUA, 2015), Glitch (AUS, 2015), Wynonna Earp (EUA; CA, 2016) e até na temporada final da saga Supernatural (EUA, 2019), quando, usando magia, os irmãos Winchester fazem um muro energizado, para impedir que os espíritos do mal, liberados por Deus, entrem no território dos vivos.

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Figura 5: Vidas separadas pelo muro invisível de Under the dome
Imagem disponível em: <https://www.businessinsider.com/stephen-king-wants-netflix-to-make-under-the-dome-series-2019-6>

Os muros também aparecem na nova versão de Eu sou a lenda (EUA, 2008), protagonizado por Will Smith. O personagem assiste a um dos filmes de Shrek e, em uma cena, o burro fala sobre os muros de nossa sociedade. Em outro momento do longa, o protagonista relata um encontro com os zumbis e constata: “[…] comportamento humano típico completamente ausente” (EU SOU A LENDA, 2008). Essa relação, entre muros, isolamento, solidão e ausência de humanidade não é mera coincidência. Com a tecnologia, não só as relações sociais mas também o conceito de comportamento humano foram reconfigurados. Quando o sujeito não responde mecanicamente aos estímulos e às questões pessoais, usa a máquina para conseguir manter o isolamento e o distanciamento físico, tentando se convencer de que tem mobilidade total, em um mundo sem fronteiras. Contudo, essas qualidades aplicam-se apenas o universo on-line, demonstrando que a tecnologia finalmente propiciou a criação de um universo paralelo, com cópias imperfeitas e incompletas, parcialmente próximas, mais ou menos visíveis, porque dão mais espaço ao ego e à individualidade.

Em pleno período de isolamento social, na tentativa de conter o avanço do novo coronavírus, como se não bastassem os muros e as paredes da casa ou do apartamento, a tecnologia cria mais barreiras físicas. Essa perspectiva pode gerar dúvida em alguns, mais céticos e superfãs da tecnologia, mas aí vai um exemplo: todos têm a transparência e a visibilidade nas mãos, mas, nas videoconferências, que há poucas semanas foram promovidas a lives, a maioria das pessoas simplesmente recusa o acionamento da câmera e do microfone. Sendo assim, enquanto a imagem do outro aparece nítida e, em alto e bom som, vem acompanhada da saudação e da pergunta triviais: “Oi, tudo bem?”, muitos se limitam a entrar no chat da sala virtual e responder, friamente, por meio de um simples texto escrito, sem rosto e sem voz: “Tudo, e vc?”. Com base na situação descrita, que está ocorrendo hoje, de modo sistemático, em reuniões de trabalho, conversas com amigos ou familiares e até mesmo nas aulas on-line, concluímos que o afastamento e a falta de contato (Fig. 6) são escolhas, e não necessidades.

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Figura 6: Separados pela tecnologia
Imagem disponível em: <https://contrafatual.com/2020/02/08/contra-a-tecnologia/>

Todos que hoje têm acesso a um computador ou a um smartphone poderiam ver e serem vistos; poderiam falar e serem ouvidos. Com certeza, isso ajudaria a aplacar a dor da saudade. Porém, depois de um bom tempo acostumados à privacidade e à distância, a tela-muro parece se solidificar cada vez mais… Esse novo comportamento é preocupante, porque indica que estamos recusando o contato mais próximo, do tipo olho no olho, que nos lembra de que somos humanos. Negando isso, ficamos cada vez mais perto da máquina, afinal já não existe muita “diferença discernível entre conversar com ela ou com uma pessoa” (RÉGIS, 2012, p. 113). De fato, esse é um risco que as pessoas assumem, quando permitem que a realidade virtual (RV) seja predominante, dia após dia: “[…] ‘a RV é uma realidade que é aparentemente verdadeira, mas não verdadeiramente verdadeira, […]’. Ser humano e máquina estão nela tão interligados que a natureza de cada um não é mais discernível” (SANTAELLA, 2003, p. 305, grifo no original).

O prognóstico é aterrador e não se encerra por aqui. Há, ainda, muito mais a ser dito, já que “novas tecnologias permitem novos modos de experiência, fazendo repensar o próprio conceito de humano” (RÉGIS, 2012, p. 184). Retomando a relação entre a tecnologia e a nova onda global, já constatamos que os avanços e as modernidades que conhecemos e usufruímos hoje surtiram efeito contrário em relação ao que se pretendia, de início, quanto à homogeneidade e à relativização do espaço e das linhas fronteiriças. Entretanto, as pessoas também são responsáveis por esse paradoxo. Então, vejamos: a telepresença possibilita que o corpo ausente participe “de uma comunicação efetiva” (SANTAELLA, 2003, p. 293); porém, quando alguém decide não acionar câmera nem microfone, enquanto está participando de uma live, a presença não se concretiza. Ao contrário, torna-se fluida, etérea, líquida… Afinal: “Não há emoções nem intelecto sem corpo. Não há sujeito nem personagem sem corpo” (DAVINI, 2007, p. 314).

E assim, infelizmente, mais um muro é levantado. Sem rosto e sem voz, as pessoas recusam as possibilidades que a tecnologia oferece, na tentativa de garantir o isolamento, em seus pequenos mundos, cada vez mais particular e alheio aos outros, à sociedade, e ao Mundo com “M” maiúsculo.

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Figura 7: A queda do muro de Berlim, em 1989
Imagem disponível em: <https://radiopeaobrasil.com.br/ha-29-anos-caia-o-muro-de-berlim/>

Mais de 30 anos depois, é hora de derrubar outros muros!

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
DAVINI, S. Voz e palavra. Música e ato. In: MATOS, C. N. de; TRAVASSOS, E.; MEDEIROS, F. T. de. (Orgs.). Ao novo encontro da palavra cantada. Poesia, música, voz. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2007, p. 309-326.
EL PAÍS. Os muros do mundo: 21 fronteiras históricas. Disponível em:<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/27/album/1488207932_438823.html#foto_gal_20>. Acesso em: 5 jul. 2020.
EU SOU A LENDA. Direção: Francis Lawrence. EUA: Warner Bros., Village Roadshow Studios, Overbrook Entertainment e Weed Road; Warner Bros., 2008. 100min, colorido.
GAZETA BRASIL. Trump constrói muro ao redor da Casa Branca para garantir segurança. Disponível em: <https://gazetabrasil.com.br/mundo/trump-constroi-muro-ao-redor-da-casa-branca-para-garantir-seguranca/>. Acesso em: 8 jun. 2020.
MAISONNAVE, F.; ALMEIDA, L. de.  Um mundo de muros. As barreiras que nos dividem. Folha de S. Paulo, 26 jun. 2017.
PESAVENTO, S. J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
PINTAUDI, S. M.; FRÚGOLI JR., H. (Org.). Shopping centers: espaço, cultura e modernidades nas cidades brasileiras. São Paulo: UNESP, 1992.
RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

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