O voo e a queda em Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli
O novo romance de Cezar Tridapalli, Vertigem do chão, foi lançado em novembro de 2019. A narrativa entrelaça as histórias simultâneas de Leonel (dançarino) e Stefan (corredor), dando destaque às relações dos personagens com o corpo, a sexualidade, a sociedade e o espaço. Enquanto Leonel decide deixar Curitiba e ir para Utrecht, na Holanda, Stefan faz justamente o oposto, partindo de Utrecht, rumo a Curitiba. A distância, a oposição entre o chão e o ar (representada pelos voos de avião) e os deslocamentos dos personagens funcionam como metáforas da busca pelo novo. Afastar-se do chão ultrapassa o significado de simples viagem. Para Leonel e Stefan isso significa uma espécie de ruptura — com o passado, com suas raízes e suas tradições:
O voo de Leonel saiu de madrugada, quase dia, o horizonte já anunciava o clarão. As luzes minúsculas, espaçadas e coloridas da pista de decolagem indicaram o caminho. As rodas do Boeing 777-300 deixaram de atritar o asfalto calejado e resignado por, sendo chão, dar suporte a mais um voo. Sob os pés, não havia mais nada que os ligasse à terra.
Suspensas, as raízes se ressentiam do mundo. (TRIDAPALLI, 2019, p. 58)
O voo indica o anseio por uma nova jornada, uma nova chance de vida… Além disso, essa volatilidade está intrinsecamente ligada à vertigem, que dá título ao livro (Fig. 1):
Enquanto tudo parece fora de lugar, Leonel e Stefan decidem tirar proveito do caos, para reorganizarem as coisas. O dançarino chega até mesmo a refletir sobre a importância de desaprender e de se tornar mais aberto a inovações: “Agora pesquisava formas de desaprendizado, os movimentos clássicos tão automáticos nas mãos e pés esticados precisavam ser lavados do corpo por quebras literais e simbólicas, dos quadris e costas até o modo linear do pensamento” (TRIDAPALLI, 2019, p. 67). Nesse contexto, a ruptura vai além da história e se concretiza também na estética, pelos desafios que o livro impõe ao leitor. Quando li Vertigem do chão, comecei pela costumeira leitura silenciosa, mas me deparei com trechos que me obrigavam a parar e a retroceder. Dada a frequência desse processo, experimentei a leitura em voz alta e descobri um novo tipo de prazer no texto. No livro, trechos longos e contínuos quebram as regras. Em vez de pontos, as vírgulas se acumulam, misturando as informações: “Lá, só a dor das descobertas abafadas, Leonel, tenha modos, Leonel, aprenda a ser homem, você vai aprender na marra, então, tome isso e mais isso” (TRIDAPALLI, 2019, p. 43).
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Em alto e bom som, fui fazendo experimentos e lia o mesmo trecho de modos distintos. Buscava, na desordem vertiginosa do narrador, a ordem perdida da tal norma culta, apenas por diversão, e esse ritmo de duplicação realçou o efeito da linguagem utilizada no romance. Claro que havia vezes em que a leitura em voz alta me oferecia o benefício da sonoridade estridente e plena de algumas palavras. Seguindo esse critério da velha eufonia, o termo que mais me chamou a atenção foi “fuzarca” (TRIDAPALLI, 2019, p. 286). De início, apenas percebi o agradável jogo entre os sons do “z”, do “r” e das vogais abertas, mas, depois disso, a leitura daquela palavra despertou em mim uma memória afetiva e, a partir daquele termo antigo, com certo ranço, viajei para minha infância, lembrando minha mãe e a casa de meus avós aos domingos, quando todos se reuniam e, em se tratando de uma família italiana, a fuzarca de fato acontecia.
Em Vertigem do chão, esse processo memorialístico também afeta os protagonistas, afinal, diante do novo, é quase impossível não enxergarmos o peso da tradição, que se liga ao tempo, de modo inexorável, como demonstram estes dois exemplos: o primeiro é do avô holandês de Leonel, obrigado a aceitar o neto, filho de um negro — “Não era preto, mas na cidade de colonização holandesa, com imigrantes que cultivavam leite e não café, o mulato era ovelha das mais negras” (TRIDAPALLI, 2019, p. 62); e o segundo é do pai de Stefan, que se recusava a comentar a homossexualidade do filho — “Tudo foi simples, seguiu a direção dos desejos, o apoio da mãe, o silêncio do pai, que perguntou à mulher por que diabos precisaria dizer alguma coisa. Por acaso deveria dizer algo se o filho revelasse que não lhe agradavam os sorvetes de mirtilo, apenas os de cereja?” (TRIDAPALLI, 2019, p. 72-73)
De muitas maneiras, essas passagens nos revelam ao menos um dos motivos da inadequação e da busca que movem os personagens. Leonel, por exemplo, sai de Castro para Curitiba, e depois para a Holanda. Ele persegue a mudança, desejando sempre mais, já que a cidadezinha do interior e a capital paranaense eram mundos pequenos demais, incapazes de atender às suas amplas expectativas. Não por acaso, Leonel passa a estudar um livro, “a pratical guide to Viewpoints and Composition”, com o qual aprendeu sobre “decisões internas, estruturas, regras e problematizações intrínsecas. Então Viewpoints era isso?” (TRIDAPALLI, 2019, p. 58). Na dança e na vida, Leonel precisava dessa mudança de perspectiva…
Para explorar a simultaneidade e para realçar a busca incessante dos personagens, o livro faz inúmeros cruzamentos: de nomes, espaços, situações e linguagens — e isso representa outro desafio ao leitor. Os espaços e os protagonistas, antes bem delimitados e separados por blocos narrativos que ocupavam páginas a fio, passam a se unir, misturando-se sem aviso. Porém, o tempo passa, as histórias se confundem e o próprio leitor experimenta os efeitos da “vertigem do chão”, tornando-se perdido. Tudo fica girando, em suspensão, e cabe ao leitor juntar as peças e fazer as associações: “Quando dobraram à direita para entrar na Alfredo Bufren, Leonel saiu do quarto e deu de cara com um estranho” (TRIDAPALLI, 2019, p. 115). Em uma única frase, o narrador nos conta sobre Stefan e um ciclista (foram eles que “dobraram à direita para entrar na Alfredo Bufren”), mas, de repente, há um corte e surge Leonel, lá em Utrecht (“sai[indo] do quarto e d[ando] de cara com um estranho”). A narrativa, então, torna-se movediça, sem muita indicação de espaços ou pessoas. Esse estilo me fez lembrar das obras de João Gilberto Noll, que envolvem o protagonista e o leitor em um espaço confuso e inescrutável.
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Uma vida nova, em um país diferente, permitiu que Leonel e Stefan sonhassem e tivessem esperanças, de serem aceitos e compreendidos. Em outras culturas e em outros espaços, radicalmente distintos daqueles que conheciam, talvez pudessem se tornar mais iguais: “A mudança do que circunda seria capaz de mudar em que medida o corpo circundado?” (TRIDAPALLI, 2019, p. 52). Leonel tinha certeza de que, se ele fosse capaz de mudar o mundo à sua volta, ele também mudaria. Aliás, nesse sentido, a convicção do personagem era tanta que chegava a ser paradoxal, levando-o a assumir uma identidade totalmente falsa: “Tantas coisas por fazer, uma delas mudar o status no Facebook. Não era mais de Curitiba, era de Utrecht, não era mais da rua XV de Novembro, era da Biltstraat” (TRIDAPALLI, 2019, p. 127, grifo nosso).
Vertigem do chão trata das identidades, porque discute questões que dizem respeito ao território — não apenas geográfico e cultural, mas também corporal, sexual, individual, familiar e social. Vertigem do chão trata da intolerância[1], que transcende as barreiras de tempo e o espaço. Agora, no passado, ou no futuro; no Brasil, na Holanda, ou em qualquer outra parte do mundo: existe a intolerância — sempre a mesma, apesar de as pessoas, as épocas e os lugares serem outros. Em tempos de pandemia, parece natural que nossas atenções, hoje, estejam voltadas ao novo e letal COVID-19. Entretanto, a intolerância também é viral, ainda não tem uma cura específica, não existem vacinas e esse mal pode ter seu efeito potencializado pela ação de doenças crônicas, como preconceito, descontrole, individualismo, discriminação e psicopatias em geral.
Nota de fim
[1] Assim como o cruzamento dos personagens e dos espaços me fez associar Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli, ao estilo do escritor João Gilberto Noll, sobre a questão da intolerância foi praticamente impossível não lembrar o conto “Terça-feira gorda”, escrito por Caio Fernando Abreu e publicado na coletânea Morangos mofados. Só agora me dei conta, mas, durante minha leitura, acabei retomando dois autores gaúchos e da região sul… Coincidência?
REFERÊNCIA
TRIDAPALLI, Cezar. Vertigem do chão. Belo Horizonte: Moinhos, 2019.
Oi, Verônica: sempre um bom artigo e uma lição — “Entretanto, a intolerância também é viral, ainda não tem uma cura específica, não existem vacinas e esse mal pode ter seu efeito potencializado pela ação de doenças crônicas, como preconceito, descontrole, individualismo, discriminação e psicopatias em geral.”
Abraço do Beto
Obrigada, Adalberto. No esboço do texto, eu tinha programado essa relação da intolerância com a pandemia atual, mas depois eu acabei cortando. Porém, antes de publicar, lembrei-me de seu texto sobre o medo e resolvi voltar atrás. Acho que é necessário não deixarmos que temas importantes sejam abordados apenas pela imprensa. As artes também devem fazer seu papel, sempre que possível. Abraço.