A linguagem feminina Lispectoriana

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Acordo às oito aos sábados e saco sonolenta de minha prateleira bagunçada o livro mágico de contos de Clarice Lispector. Busco dar objetivo concreto ao meu vago olhar matinal, que desdenha do que vê na concretude e, assim, solicita com ares de disparate as linhas tortas da gigante autora brasileira. Sentamo-nos então, eu e ela, solenemente, entre goles de café e questionamentos bárbaros sobre o ser-se. Mas num outro dia qualquer, para minha surpresa, encontrei-me com Clarice Lispector meio de supetão, na página noventa e seis da leitura base da minha aula de crítica literária em solos escandinavos. Mal sabia eu que seria presenteada com o cheirinho de meu país na obra Critical Theory Today, de Lois Tyson.

Pois é, leitor, e não é que Clarice está lá, listada como exemplar de écriture féminine, conceito da teórica feminista francesa Hélène Cixous? Meu peito estufou-se de energia contagiante, feito quando o necessário “você está certa” chega aos ouvidos depois de horas articulando argumentos em uma discussão. E eu estava certa: Clarice Lispector é mesmo tudo aquilo que minha intuição de leitora assídua gritava durante o virar de páginas nos cafés da manhã de sábado. O mundo concorda com o tamanho de Clarice.

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Deixe-me contar um pouco sobre Cixous, a teórica francesa comovidamente apaixonada por nossa Clarice. Militante importante da teoria crítica feminista, Cixous engordou o coro das pensadoras da década de 1960, quando a exclusão de mulheres da política tornou-se aparente. As feministas dessa leva do olhar psicanalítico dos estudos feministas compreenderam que a língua refletia a exclusão feminina e que a presença da mulher na literatura mudaria as relações de poder. Pois bem, mas aí é que está: para Cixous, a mulher não conseguiria resistir ao patriarcado meramente se tornando parte dele. Não, para ela, a busca por igualdade não bastava. Afinal de contas, masculinizar o feminino não seria exatamente dar ao rígido patriarcado exatamente o que ele quer? Sim, eu também concordo. A inveja do pênis e o pejorativo conceito de ‘histeria’ freudianos seriam glorificados após o assassinato lento daquilo que torna o feminino exatamente o que é.

A linguagem feminina Lispectoriana 1

Dessa forma, para as teóricas dessa corrente de pensamento, a mulher por si só deveria focar em sua própria forma de ser, sua fonte de vida, de energia, e, como consequência, expandir seu dizer no mundo, seu modo de operar, a sua linguagem feminina. Nascia, então, o belo conceito de écriture féminine: prosa que elimina o pensamento binário patriarcal que oprime e silencia a mulher. Organizada de forma fluída, o dizer feminino brinca divertidamente com a associação livre, desafiando sorridente as regras lógicas da razão linear do masculino. Sim, surpreso leitor, a ideia era mesmo ser mais mulher. Ser mais ‘Clarice’!

Cixous encontrou na prosa de Clarice exemplar perfeito de sua teoria feminista. Nas linhas melódicas e sedutoras de nossa canônica autora, Cixous achou “a voz de uma mulher [que] veio de longe, como uma voz de uma cidade natal, trouxe-me percepções que uma vez tive, percepções íntimas, ingênuas e sábias, antigas e fresca como amarela e violeta das frésias redescobertas, esta voz era desconhecida para mim” (Cixous, 1979¹). Também pudera: Clarice não deixa por menos ao incluir em sua obra fragmentos perfeitos que definem sutilmente a complexidade fluída e assustadora da linguagem feminina:

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Hoje acabei a tela que te falei: linhas redondas que se interpenetram em traços finos e negros, e tu, que tens o hábito de querer saber por que – e porque não me interessa, a causa é matéria do passado – perguntarás por que os traços negros e finos? é por causa do mesmo segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti, escrevo redondo, enovelado e tépido, mas às vezes frígido como os instantes frescos, água do riacho que treme sempre por si mesma. (Lispector, 1973²)

A linguagem feminina Lispectoriana
A linguagem feminina Lispectoriana foi originalmente publicado na Edição Clarice Lispector, da revista Recorte Lírico. (Foto: Divulgação)

As linhas lispectorianas proporcionam — meio que sem querer, me parece — aquele encontro com o outro que leva ao desmoronamento das hierarquias e oposições, a quebra dos limites da vida consciente. Namorando o mundo social de dentro para fora, a prosa de Lispector demonstra como a escrita feminina pode perturbar as práticas do patriarcado, discernindo e reescrevendo o modus operandi: aquele dizer acadêmico duro, reto, metódico e solene.

Ao definir sua escrita redonda, enovelada e tépida, Clarice consolida a percepção não só de Cixous, fundadora da ideia da prosa feminina, como também de outras pensadoras feministas, como Luce Irigaray. Assim como Cixous, Luce compreende o papel da linguagem, masculina, dura e controlada, como veículo propagador do patriarcado programador. Ao comparar fala da mulher — seu conceito de linguagem feminina — ao prazer sexual feminino, Irigaray descreve a prosa Lispectoriana: diversificada, múltipla em sentidos, complexa e sutil. Quando, assim como Clarice, a mulher arrisca a falar à sua maneira, ela se joga em várias direções, deixando o masculino, o pensamento patriarcal, incapaz de discernir sentidos. Clarice encharca o leitor com seu dizer contraditório; um pouco louco se comparado à razão. Inaudível para aqueles que a ouvem por meio de preconceitos. Clarice imprime com maestria em sua prosa a força peculiar do feminino, ainda tão místico e desorganizado em um mundo articulado inteiramente pelo masculino.

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. Não é um recado de ideias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é a uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. Mas agora chegou a hora de parar a pintura para me refazer, refaço-me nestas linhas. Tenho uma voz. Assim como me lanço no traço de meu desenho, este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer. (Clarice, 1973³)

Então fica o questionamento desconcertante de Lois Tyson(4): “como podemos compreender o que a ‘mulher’ é ‘por natureza’, dado que nunca a vemos fora do condicionamento social do patriarcado?”. Talvez esta autora também precise conhecer Clarice e sua extensa obra que não se atém a propagar diretamente o discurso feminista aos moldes de Beauvoir e o materialismo feminista francês. Nossa gigante Lispector mostra como é e só. Ela narra o mundo interno feminino e dá vazão ao fluxo contínuo e abstrato, tão subjugado e maltratado pela narrativa patriarcal.

Ufa! Respiro aliviada. Termino esse meu debruçado olhar sobre o feminino lispectoriano bem como sua prosa: viva, infinita e ilimitada. Clarice rima com felicidade e medo. O medo da felicidade de ser-se feminina.


¹Em sua obra Vivre l’Orange, to Live the Orange. Paris: Des Femmes, 1979.
²Trecho do livro Água viva, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979 (1973), página 3
³Mais um trecho do livro Água Vida, Água viva, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979 (1973), página 7.
4Em seu livro ‘Critical Theory Today’, página 92.

O texto “A linguagem feminina Lispectoriana”, da professora Mariana Hoefel foi publicado originalmente na Edição Clarice Lispector, da Revista Recorte Lírico.

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A linguagem feminina Lispectoriana 2

Mariana Hoefel é Mestranda em Literatura Inglesa na Universidade de Agder, na Noruega. Autora do blog Reflexões de uma Borboleta.
E-mail.: [email protected]

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