Hiperlinks e Leitura não linear na Net Art de Olia Lialina

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Atualmente, o hipertexto redefine a função do leitor e o percurso de leitura, devido à utilização de hiperlinks. A principal consequência dessa tipologia textual, exclusiva do ciberespaço, é a democratização das linguagens: “A possibilidade de combinar texto e outros tipos de signos em hiperambientes descentraliza a hierarquia linear e reconceitualiza a dimensão gráfica do texto” (SANTAELLA, 2012, p. 236). Outro efeito é o jogo que se estabelece entre texto e receptor.

Apesar de uma obra convencional (construída sem hiperlinks) já exigir trabalho por parte do leitor, pois “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho” (ECO, 1994, p. 9), o hipertexto acentua essa necessidade de colaboração. Com base nos postulados de Wolfgang Iser, que apresenta quatro tipos distintos de jogos, pode-se inferir que a hipertextualidade corresponde a uma modalidade específica, que o teórico chama de Alea, a qual propõe “a desfamiliarização, que é alcançada pela estocagem e condensação de diferentes textos” (ISER, 2002, p. 113). Dessa forma, por meio da “subversão da semântica familiar”, o texto “frustra as expectativas guiadas pela convenção do leitor” (ISER, 2002, p. 113).

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De fato, em My boyfriend came back from the war, de Olia Lialina, o percurso da leitura depende da ação do leitor. É possível ativar todos os itens da mesma tela ou acionar apenas um deles. Quanto mais hiperlinks uma tela apresenta, mais possibilidades e variações surgem, afinal cada leitor decide clicar (ou não) em hiperlinks específicos (Fig. 1):

Hiperlinks e Leitura não linear na Net Art de Olia Lialina
Figura 1: Na tela acima há 3 hiperlinks: Em qual deles você clicaria? (LIALINA, 1996)

Nessa dinâmica, o leitor pode pensar que comandam a situação, mas, ao contrário disso, ele apenas reage ao texto: “Quanto mais o leitor é atraído pelos procedimentos a jogar os jogos do texto, tanto mais é ele também jogado pelo texto” (ISER, 2002, p. 115-116, grifo no original). Para confirmar esse aspecto, há diversos exemplos, na obra de Olia Lialina. Em algumas telas, a autora oferece a imagem do rosto feminino em close-up como uma espécie de chave-léxica, afinal apenas esse elemento constitui um hiperlink, permitindo o desdobramento do texto. Associado a isso, é salutar o fato de que a imagem não permite o uso do sublinhado (tipo de destaque que identifica os hiperlinks, em um texto verbal). Sendo assim, o rosto é um hiperlink oculto, o que dificulta ainda mais a interação do leitor com o texto. Cabe ao leitor, então, fazer tentativas, às vezes vãs, porque em cada tela há uma grande quantidade de pequenos frames, porém nem todos podem ser ativados. Apesar disso, todos eles devem ser ao menos verificados, já que podem revelar uma parte fundamental da história.

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A leitura dos espaços nulos, quase sempre na cor preta e, às vezes, na branca, é outro processo que delineia o perfil do leitor, a exemplo do que ocorreu nas obras de Stéphane Mallarmé, no final do século XIX, e nos poemas concretistas, na segunda metade do século XX. Na net art em análise, os espaços em preto, e vazios, vão se tornando mais abundantes, como demonstra a Figura 1. Isso indica que, ao contrário do que ocorre normalmente, o texto chega ao fim não quando todos os quadrados — ou “lacunas”, emprestando a nomenclatura de Umberto Eco (1994, p. 9) — são preenchidos, mas quando todos eles ficam vazios, como sinal de que o conteúdo que havia em cada um deles foi totalmente exaurido. Esse recurso de ler um espaço em branco (ou em preto), sem nenhum elemento verbal, corresponde a uma pausa, em que a autora privilegia um silêncio propositado, de modo a interferir no ritmo da leitura: “Mudar a facilidade com que alguém pode se orientar dentro de tal contexto e buscar referências individuais muda radicalmente tanto a experiência da leitura quanto […] a natureza daquilo que é lido” (LANDOW, 1992, p. 5, tradução nossa). Os vazios constituem, portanto, outro tipo de código, com o qual o leitor não está acostumado, mas com o qual terá de lidar, na atividade interpretativa. Como consequência, redefinem-se os conceitos de texto e de escrita, que passam a obedecer a uma nova filosofia da linguagem.

Analisando detidamente o efeito da hipertextualidade sobre o leitor, o posicionamento da crítica especializada é unânime: Tânia Porto salienta a individualização e a autonomia, ao concluir que a “relação interativa com os meios permite ao usuário assumir o papel de sujeito” (PORTO, 2006, p. 46); e Theodor Nelson aponta o fato de o hipertexto propiciar ao receptor algumas vantagens, tais como: “[…] leque de escolhas […], senso de liberdade, […] motivação e […] compreensão intelectual” (NELSON, 1965, p. 96, tradução nossa). Partindo dessa perspectiva, Luís Arata vai além, mencionando que a linguagem digital, por facilitar a multiplicidade, permite a relativização das fronteiras:

A primeira qualidade da perspectiva interativa é abrir múltiplos pontos de vista, por meio do apagamento dos limites de realidades e objetos já convenientemente fixados. Isto afasta a ênfase do objeto para aproximá-la mais do sujeito observador. Os espectadores interagem com os objetos de modo a celebrar a subjetividade e a diversidade. (ARATA, 1999, tradução nossa)

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Na teoria da literatura, já presenciamos a relativização do status do autor, processo que permitiu mais espaço ao leitor. Portanto, o receptor passou a desempenhar uma função mais livre e preponderante na interpretação, de modo a considerar o texto dentro de sua formação e de seu repertório cultural. Sem dúvida, isso representa um movimento de descentralização. Agora, com a expansão da literatura digital, essa trajetória evoluiu e, de um modo metalinguístico, o texto (e também a mídia e/ou a arte associada(s) a ele) passou a questionar seus próprios limites e recursos. Consequentemente, essa autocrítica exigiu diferentes conexões, reconfigurando a intertextualidade, promovendo os conceitos de interartes, intermidialidade e hipertexto e, dessa forma, propiciando uma alteração significativa na estrutura e na estética da arte literária.

Este texto apresenta excertos do artigo “Fragmentação e simultaneidade na net art de Olia Lialina”, publicado na revista Scripta Uniandrade, v. 20, n. 3 (2022), p. 1-20.

REFERÊNCIAS:

ARATA, Luís. Reflections About Interactivity. MIT Communications Forum. 19 dez. 1999. ECO, Umberto. Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.   

ISER, Wolfgang. O Jogo do Texto. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 105-118.

LANDOW, George Paul. Hypertext. The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology. Baltimore; London: The John Hopkings University Press, 1992.

LIALINA, Olia. My Boyfriend Came Back From the War. 1996. Disponível em:  <http://www.teleportacia.org/war/war.html>. Acesso em: 26 ago. 2019.

NELSON, Theodor Holm. Complex Information Processing: A File Structure For the Complex, the Changing and the Indeterminate. In: WINNER, Lewis.  Proceedings Of the 1965 20th National Conference. New York: ACM Press, 1965, p. 84-100.

PORTO, Tânia Maria Esperon. As Tecnologias de Comunicação e Informação na Escola; Relações Possíveis… Relações Construídas. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 31, p. 43-57, jan./abr. 2006.

SANTAELLA, Lucia. Para Compreender a Ciberliteratura. Texto Digital, v. 8, n. 2, p. 229-240, jul./dez. 2012.

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