Escrita Expandida e Transletramento: Os Novos Perfis do Autor e do Leitor na Era Digital
Neste início de século (e de milênio), experimentamos inúmeras mudanças, principalmente devido aos avanços tecnológicos. A revolução gerada pelo computador e pela Internet, nas últimas décadas do século XX, no Brasil, abriu espaço para a comunicação e para o conhecimento, o que resultou em novos direitos, mas também em deveres. É preciso saber usar a rede e os novos suportes, que estão reconfigurando, incessantemente, não apenas os meios, mas também as profissões, as relações humanas e nosso modo de vida:
Pode-se concluir que a tela como espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela. (Soares, 2002, p. 152)
Atualmente, há tantos gêneros textuais novos que a autora Magda Soares recomenda o uso da palavra letramento no plural. Seguindo essa ideia, às vezes os letramentos são relacionados à noção de multiletramento, como se esses vocábulos fossem sinônimos. Todavia, no contexto atual, a diversidade de textos também está atrelada à diversidade cultural: “Diferentemente do conceito de letramentos (múltiplos) […], o conceito de multiletramentos […] aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade […]: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica […]” (Rojo, 2012, p. 13, grifo no original). Aprofundando essa definição, a autora conclui que os multiletramentos necessariamente são “híbridos”, “colaborativos”, além de fraturarem e transgredirem “as relações de propriedade (das máquinas, […], das ideias, dos textos […])” (Rojo, 2012, p. 23).
Dessa forma, conclui-se que na literatura digital os multiletramentos estão vinculados a pelo menos três fatores: diversidade cultural; surgimento de novos gêneros textuais; e popularização da Internet e das hipermídias (Fig. 1).
Portanto, há muitos motivos para que se invista, hoje, na transmidialidade como meio de proporcionar o que Henry Jenkins considera como “conteúdo expandido” ou “entretenimento multiplataforma” (Jenkins, 2013, p. 388), pressupondo os diferentes perfis de leitores, já que muitos deles querem ter a chance de aprofundar o conteúdo do texto lido, acessando informações complementares e exclusivas.
Nesse tipo de publicação − arborescente, ou em rede −, a interseção é esperada, mesmo que não seja, de fato, experimentada pelos leitores. Em suma, a simples ideia de que existe um conteúdo extra, que pode ser acessado a qualquer hora, significa a garantia de uma estrutura e de uma linguagem alternativas, as quais podem substituir a mídia impressa (dependendo do nível de apreensão e do perfil de cada leitor) ou fazer acréscimos que a enriqueçam.
Nesse trânsito, configuram-se outros tipos de letramento. Adensando a definição de Jenkins, Giselle Beiguelman sugere a noção de letramento expandido: “Trabalha-se aí com o conceito de ‘fusão dinâmica’ que aponta para novas formas de literariedade. Formas essas que são agenciadas por um processo de letramento expandido, preparado para a leitura de linguagens a um só tempo cinematográficas, videográficas […] e sonoras” (Beiguelman, 2003, p. 22, grifo no original). Nessa mesma vertente, mas fazendo referência à reciprocidade entre mídias distintas, surge o termo transletramentos, que designa o procedimento no qual “o impresso atravessa o digital e vice-versa, até mesmo porque não podemos nos esquecer que uma nova mídia contém uma antiga mídia” (Garcia, 2017, p. 218).
No aspecto criativo, a transmidialidade dinamiza a autoria. Isso é perceptível em obras que ultrapassam as barreiras da literatura impressa e repercutem também no hiperambiente digital, tornando-se temas de resenhas em revistas especializadas, jornais on-line, em blogs, nas redes sociais do autor e também dos fãs, e em canais do YouTube. Em outras palavras, o ato de submeter um mesmo texto a diferentes plataformas “oferece a oportunidade de se reimaginar o que é escritura” (Santaella, 2006), resultando em “uma investigação criativa, tanto dos meios quanto dos processos, auxiliando a desenvolver visões mais adequadas ao mundo pós-moderno”, numa firme recusa ao “atrelamento a modelos e conceitos preexistentes” (Guimarães, 2007, p. 39).
Ao investigar as literaturas impressa e digital, respectivamente, Roger Chartier estabelece as principais distinções entre elas: “materialidade” / “imaterialidade”; “contiguidade” / fragmentação; e “totalidade da obra” / “navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens nem limites” (Chartier, 1994, p. 100-101). Com base nesse paralelo, demonstra-se que a transmidialidade não se resume à repetição ou à simples transposição. Ao invés disso, esse procedimento envolve recriação, oferecendo novas possibilidades de leitura, sentido e poder de escolha, sobretudo ao leitor. O público pode decidir como acessar a obra, selecionando a linguagem e a plataforma de sua preferência.
Nesse amálgama, entre as mídias física e digital, comprova-se que um projeto transmidiático é feito a partir da troca, da soma e da reciprocidade. Dessa forma, consolida-se o aspecto plural da obra, que abrange tanto o conceito de transposição quanto de transmidialidade, de modo a permitir que autor e público transitem por linguagens e estruturas associadas a sistemas sígnicos distintos, em conformidade com o processo comunicativo atual.
Além disso, vale resaltar que, para muitos escritores, a transmidialidade resume-se a um percurso natural, que une os principais traços estilísticos do artista às possibilidades oferecidas pela tecnologia digital, na área da literatura. Sendo assim, o ciberespaço acaba se revelando como um ambiente condizente com os recursos e as características que delineiam tanto o estilo literário de muitos autores quanto o perfil da sociedade contemporânea, principalmente no que se refere à Internet e às hipermídias. Em outras palavras, a escrita criativa que se torna aliada do universo digital revela-se como algo dinâmico e em constante transformação, aprimorando os elementos de base e a própria divulgação da obra.
Nesse quesito, a transmidialidade alcança relevância, porque reflete o caráter híbrido, múltiplo e global, responsável por conectar textos e usuários, por meio da acessibilidade e do compartilhamento. Sem dúvida, isso demonstra a mutabilidade e a resiliência da literatura, arte que vem se adaptando a diferentes mídias e a cenários bastante distintos.
Da era tipográfica ao império do cinema e, mais recentemente, ao advento do computador e da Internet, a literatura não deixou de se adaptar, reinventando-se à medida que conhecia e experimentava as possibilidades apresentadas pelas novas mídias. Consequentemente, isso desencadeou mudanças também nos perfis de autores, leitores e no conceito de texto literário. Apesar de a literatura ser um tipo tradicional de arte, essa ancestralidade não a impede de protagonizar trocas sígnicas que a obrigam a rever seus limites e a forjar novas formas de expressão.
Excerto do artigo “Transmidialidade e reescrita criativa em Algo antigo, de Arnaldo Antunes”, publicado na revista Soletras (UERJ), n. 46, 2023, p. 53-77.