MEU PEDACINHO DE CHÃO (2014): A RENOVAÇÃO DA TELENOVELA PELO ARTIFICIALISMO¹
Neste estudo, será analisada a telenovela Meu pedacinho de chão (2014), assinada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, em parceria com Carlos Araújo. Exibida na faixa das 18h e com 96 capítulos, a novela ficou no ar desde 7 de abril até 1⁰ de agosto de 2014. Com base no conceito de verossimilhança e no formato tradicional das telenovelas brasileiras, esta reflexão pretende demonstrar as principais inovações que integram o projeto estético de Meu pedacinho de chão. Ao propor um mundo artificial, aproximando-se da linguagem utilizada nos desenhos animados, a obra rompe com o horizonte de expectativa do público televisivo, ao mesmo tempo em que experimenta novos recursos, os quais, por sua vez, expandem as possibilidades artísticas da telenovela.
A produção exibida recentemente é a segunda versão da novela, que foi ao ar pela primeira vez em 1971. Naquela época, Benedito Ruy Barbosa dividiu a autoria com Teixeira Filho e Dionísio Azevedo assumiu a direção. Como antigamente as telenovelas eram mais extensas, foram 185 capítulos no total, que se estenderam de 16 de agosto de 1971 até 6 de maio de 1972. Além disso, a novela tinha dois horários distintos, 13h30 e 18h, porque era atração de duas emissoras, respectivamente: a TV Cultura de São Paulo e a TV Globo (MEMÓRIA GLOBO, 2018a). Embora o autor da trama declare veementemente que a versão de 2014 não constitui um remake, usaremos essa nomenclatura para classificar a produção em análise, afinal, a trama principal e as subtramas não foram alteradas de modo significativo. Evidentemente, há mudanças: sutis, nos nomes de alguns personagens; ou mais drásticas, como exemplifica a opção estética pelo não realismo, escolha que reorienta a produção do cenário e do figurino, sobretudo. Porém, os temas da posse e do uso da terra, que embasam a divergência política dos antagonistas Epaminondas (conservador) e Pedro (liberal), são mantidos. Os subtemas também são preservados, dando lugar a situações diversas: o romance entre Zelão e a professora Juliana; os conflitos do Coronel Epaminondas com o filho mais velho e com a esposa; e as histórias do vendeiro Giácomo.
No que diz respeito à alteração estética, cabe ressaltar que o remake assemelha-se à adaptação, processo que permite e por vezes até exige mudanças acentuadas, a fim de tornar a nova produção mais significativa para o público-alvo. Nesse sentido, Robert Stam enfatiza que a adaptação pode ser considerada “um tipo de barômetro das tendências discursivas em voga no momento da produção”, já que “é um trabalho de reacentuação, pelo qual uma obra que serve como fonte é reinterpretada através de novas lentes e discursos” (STAM, 2006, p. 48). Essa afirmação contribui para estabelecermos que as diferenças entre as versões de 1971 e 2014 são decorrências do contexto histórico. Enquanto a primeira preservava a técnica da teledramaturgia tradicional2, a segunda investiu na artificialidade, negando o aspecto realista, em favor da proximidade com outro tipo de produção artística: o desenho animado. As imagens a seguir exemplificam essa oposição:
O figurino das crianças, marcado pelo excesso e por materiais estranhos à vestimenta cotidiana, como exemplificam a borracha (nos protetores de ouvido do garoto) e o plástico (nas mangas de Pituca; no cachecol e no chapéu de Serelepe), demonstra muito bem a opção dos realizadores da novela de 2014, de recusar a representação verossímil. Conforme Antoine Compagnon, o verossímil compreende “o que é aceitável pela opinião comum, o que é endoxal e não paradoxal, o que corresponde ao código e às normas do consenso social” (COMPAGNON, 2003, p. 106, grifo no original). Em outras palavras, no mundo possível da ficção de cunho mais realista, “os indivíduos” devem ser “compatíveis com o mundo real” (COMPAGNON, 2003, p. 136). No caso da telenovela brasileira, há, desde o início, comprometimento inegável com a verossimilhança. Portanto, ao negar essa característica, o diretor Luiz Fernando Carvalho se opõe ao formato tradicional das novelas.
Originalmente, esse gênero televisivo possui caráter teleológico, por apresentar “várias narrativas entrelaçadas e paralelas”, que se desenvolvem “linearmente ao longo de todos os capítulos” (MACHADO, 2003, p. 84), é direcionado à “faixa mediana”, considerando os “níveis sócio-culturais-econômicos da audiência” (MELO, 1988, p. 36) e, em razão disso, está completamente associado “à realidade brasileira”, permitindo ao público “reconhecer-se e ao seu meio ambiente” (MELO, 1988, p. 49). Aprofundando ainda mais essa questão da verossimilhança, Melo e Hoineff associam a telenovela ao factual, como exemplificam os trechos a seguir: “[…] não é […] espantoso que o tratamento dado pelas mídias aos enredos de novelas seja do mesmo teor que o dedicado aos fatos” (HOINEFF, 1991, p. 23); “[…] o segredo da telenovela reside na combinação de dois ingredientes: a ‘ficção sem fantasia’ e uma ‘moral doméstica’. […] a telenovela faz da ficção um espelho do real e incorpora ao enredo fatos correntes […]” (MELO, 1988, p. 51, grifo no original).
A partir das afirmações transcritas acima, percebe-se que tanto Melo quanto Hoineff parecem desconsiderar o processo de representação, conceito que evita a associação estrita e direta entre realidade e ficção. Em outro trecho, Melo vai além, mencionando que o cotidiano novelesco “‘coincide exatamente com o nosso […], uma vez que o que se passa de um lado da tela se passa também do outro’” (MELO, 1988, p. 53, grifo no original). Sem dúvida, a ideia de exatidão usada pelo autor é inadequada. Nos textos ficcionais, não há identidade ou equivalência (se considerarmos o sentido etimológico desses termos). Há, sim, semelhança, no caso das obras que primam por um alto índice de verossimilhança. Na obra Introdução à semanálise, Julia Kristeva contrapõe ficção e realidade, para analisar a questão da representação literária. Nesse sentido, as conclusões da autora contribuem para reforçar a tese de que um texto considerado verossímil não traduz a realidade; pelo contrário, ele apenas apresenta alguns pontos de contato, na tentativa de se aproximar dela: “A característica radical do verossímil semântico […] é a semelhança” (KRISTEVA, 2005, p. 137, grifo no original). Além disso, a autora completa: “Tornar verossímil, ao nível semântico, seria reduzir o artificial […]” (KRISTEVA, 2005, p. 138, grifo nosso).
Com base nessas citações, reitera-se a oposição de Meu pedacinho de chão (2014) às características essenciais da telenovela. No remake, o factual é transmutado pela fantasia e pelo artificial, elementos determinantes na obra, tendo em vista sua relação intermidiática com os desenhos animados. Dessa forma, ao privilegiar cenas não realistas, dando relevo ao artificialismo (em vez de reduzi-lo, como mencionou Kristeva), a produção televisiva em análise institui novas opções tecnoestéticas, as quais influenciam decisivamente os processos de produção e recepção3. De modo a exemplificar as principais alterações na produção de Meu pedacinho de chão (2014), imagens do figurino e do cenário demonstram a ênfase nas cores, formas e materiais que contribuem para a artificialização dos personagens, espaços e das cenas como um todo.
Nas imagens acima, Juliana usa cabelo cor-de-rosa, vestido feito não apenas com tecido, mas também com plástico, e colorido, com dois tons de rosa e de azul, além do vermelho e do preto. O design da roupa e dos acessórios é bastante significativo, já que é o grande diferencial, considerando-se os modelos convencionais de roupas, usados hoje em dia. Igualmente, Zelão utiliza o preto e as três cores puras e, por esse contraste, inova no estilo caubói. O cavalo de carrossel infantil (ornado e colorido com tons parecidos com os da roupa do protagonista) e as flores de plástico, ao fundo, também ajudam a consolidar a estética não realista da telenovela. Além disso, há o espaço da venda, com queijos, presuntos e salames visivelmente cenográficos. Até o espectador menos atento percebe que os queijos não passam de peças de isopor pintadas, às vezes com imperfeição, afinal, a artificialidade é a meta da equipe de produção.
Na figura abaixo, focaliza-se exclusivamente o cenário, que, no caso da cena apresentada, não exige cidade cenográfica, nem estúdio. Isso se deve ao fato de a chegada do trem à estação da Vila de Santa Fé sempre ser filmada em uma maquete, na qual um trem de brinquedo motorizado circula pelos trilhos, em meio a um campo verdejante com flores, em que o acúmulo de tinta se sobressai, quando a imagem é mostrada em close-up, pela câmera.
Na figura abaixo, focaliza-se exclusivamente o cenário, que, no caso da cena apresentada, não exige cidade cenográfica, nem estúdio. Isso se deve ao fato de a chegada do trem à estação da Vila de Santa Fé sempre ser filmada em uma maquete, na qual um trem de brinquedo motorizado circula pelos trilhos, em meio a um campo verdejante com flores, em que o acúmulo de tinta se sobressai, quando a imagem é mostrada em close-up, pela câmera.
A princípio, a narrativa parece verossímil, pelos temas (diferenças familiares e políticas), pelos núcleos formados pelos personagens (escola, igreja, família, etc.) e pelos espaços comuns (estação de trem, venda, escola, etc.), mas o espectador percebe rapidamente uma ou outra interferência de elementos estranhos nas cenas (um trem de brinquedo, um cavalo falso, árvores com caules rendados e assim por diante). O limite entre fantástico e maravilhoso, portanto, é muito tênue, e o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos personagens diante de um evento considerado extraordinário:
Um segundo nível de maravilhoso não tão radical permite que os seres humanos comuns convivam num cotidiano aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou almas etc. Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo narrativo, também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus pressupostos. (RODRIGUES, 1988, p. 56)
Na versão de 2014 da telenovela em questão, ocorria exatamente isso. Nenhum personagem estranhava as roupas de plástico da professora, as galinhas de porcelana correndo pela fazenda ou o capim multicolorido à beira das estradas. Nesse mundo de imaginação e realidade, ainda é possível falar de outro conceito: o “realismo maravilhoso”, porque não exclui “os realia (real, no baixo-latim); entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram” (RODRIGUES, 1988, p. 59). Essas diferenças de Meu pedacinho de chão (2014) desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para a sociedade contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) na teledramaturgia e na realidade cotidiana, proporcionando um novo formato de texto, que, por sua vez, reorientava o comportamento do público e da crítica.
Nos dias de hoje, em que predomina a cultura cyber, a literatura e os demais tipos de arte propiciam outro ritmo, mais específico e contemplativo, e que se opõe à rapidez e à superficialidade inerentes às redes sociais. Nesse sentido, as artes podem ser consideradas um tipo de “antídoto à robotização” (COELHO, 2007), porque são instrumentos de “‘formação das mentes’ e de conhecimento de mundo, da vida” (COELHO, 2007, grifo no original). O poder desse antídoto sem dúvida é reforçado quando se trata de uma obra de caráter não realista, permitindo que o leitor/espectador vá muito além da lógica do mundo real. A fim de interpretar as diferenças presentes no texto não realista, a análise comparativa e de oposição à realidade cotidiana revela-se um exercício mental que não apenas estimula a imaginação, mas também aprimora o senso crítico. Nas palavras de Nelly Novaes Coelho, a literatura contribui para a “dinamização interior do indivíduo, para o desenvolvimento de suas potencialidades, de maneira plena” (COELHO, 2007).
Para investigarmos mais detidamente os principais elementos que consolidam a estética não realista de Meu pedacinho de chão (2014), importa ressaltar outros detalhes do cenário:
A cenografia de Meu Pedacinho de Chão não tinha compromisso com a realidade, proporções ou estilo arquitetônico. A Vila Santa Fé era um lugar criado pela imaginação de Serelepe (Tomás Sampaio). Os 28 prédios, numa área de 7 mil metros quadrados, eram revestidos por latas, remetendo ao material usado em brinquedos do século XIX.
Havia apenas dois cenários em estúdio: as casas de coronel Epa e (Osmar Prado) de Pedro Falcão (Rodrigo Lombardi). Vila Santa Fé era colorida, solar e alegre. O projeto paisagístico era quase integralmente sintético. Havia horta com legumes enormes e jardins de flores artificiais (mais de 120 mil flores coladas manualmente, uma a uma). As árvores foram coloridas com mantas de crochê. (MEMÓRIA GLOBO, 2018b)
A imagem acima demonstra que a equipe de produção de fato alcançou o objetivo de construir espaços que remetessem “ao material usado em brinquedos do século XIX”, como mencionado na citação anterior. Ao longo desta análise, já foi consolidado o atrelamento do gênero telenovela à representação do realismo cotidiano. Apesar disso, parece apropriado transcrever aqui o testemunho do crítico de TV Eugênio Bucci, que cita detalhes bem específicos de um cenário novelesco ideal. O autor defende que o espaço e o figurino devem sempre apresentar sinais de uso e do tempo, ou seja: o cenário não pode ser “novinho”, sem “risco” ou “tinta descascada” (BUCCI, 2000, p. 76). Essa afirmação torna ainda mais clara a ideia da contrariedade do projeto do diretor Luiz Fernando Carvalho em relação ao formato tradicional das novelas brasileiras. De fato, as casas perfeitas e coloridas de Santa Fé desobedecem totalmente ao padrão Globo de produção.
Outro detalhe da cenografia é apresentado nas imagens a seguir, que trazem, respectivamente, um painel de fundo pintado e flores artificiais (de plástico, tecido e lata):
A partir desses exemplos, podemos associar a opção estética do diretor à tendência teatral que predominava praticamente até o final do século XIX. Nela, painéis (quase sempre feitos de tecido) eram pintados com uma paisagem que serviria de pano de fundo para as ações representadas no palco. Além disso, como acessórios de decoração eram utilizadas plantas artificiais. Jean-Jacques Roubine faz referência a isso, quando cita Antoine, encenador francês que rompeu com esse padrão, para instituir uma estética mais realista (processo oposto àquele adotado por Luiz Fernando Carvalho, na segunda versão de Meu pedacinho de chão). Antoine, de acordo com Roubine, inaugurou “a era da encenação moderna” (ROUBINE, 1998, p. 24), ao introduzir, no palco: “[…] objetos reais, ou seja, que contêm o peso de uma materialidade, de um passado, de uma existência. Trata-se, sem dúvida, de produzir um efeito mais verdadeiro” (ROUBINE, 1998, p. 25).
Aproveitando esse breve paralelo com o teatro, é importante frisar que, desde sua origem, a telenovela tem um parentesco inegável com a arte dos palcos. No dicionário Aurélio século XXI, o gênero televisivo é conceituado desta forma: “Novela teatralizada, apresentada em televisão” (NOVELA, s. n., grifo nosso). A mesma associação é mencionada nos livros que tratam especificamente dos formatos e da linguagem privilegiados na TV. Melo é um dos críticos a afirmar que as novelas “evoluíram do clássico modelo teatral, inteiramente dependente dos estúdios, para ganhar as ruas e registrar paisagens ou fotografar grupos humanos em movimento, absorvendo assim o ágil padrão da cinematografia” (MELO, 1988, p. 54). Nessa passagem, além da origem teatral da telenovela, o autor acentua seu caráter híbrido, que compreende não apenas os aspectos dramatúrgicos e televisivos, mas também o cinematográfico e o fotográfico, que estão intimamente ligados, pela ênfase dada à imagem.
Voltando ao papel específico do teatro, na segunda versão de Meu pedacinho de chão, pode-se estabelecer um paralelo bastante sólido entre a telenovela e a farsa, gênero teatral medieval, que evoluiu ao longo dos séculos, delineando suas características. Ao conceituar a farsa, Massaud Moisés pontua inúmeros aspectos que foram utilizados também na produção de Luiz Fernando Carvalho. O primeiro deles é “o exagero […], graças ao emprego de procedimentos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, […] a caricatura” (MOISÉS, 2004, p. 186). A discrepância que o artificialismo provoca, em relação à tradição da representação realista, é um bom exemplo disso. Não há como desconsiderar, por exemplo, o cavalo de brinquedo do protagonista Zelão. Não há preocupação em enganar o telespectador. Pelo contrário: o falseamento da realidade é proposital. Além disso, ressalte-se o perfil de Zelão, totalmente caricatural, porque utiliza o excesso na composição do personagem como um todo: postura, andar, fala, penteado, maquiagem, figurino, etc. A cena reproduzida abaixo exemplifica bem os elementos destacados neste parágrafo:
A imagem acima também serve para demonstrar o que Moisés menciona neste trecho: “A farsa dependeria mais da ação que do diálogo, mais dos aspectos externos (cenários, roupagem, gestos, etc.) que do conflito dramático” (MOISÉS, 2004, p. 186)5. De fato, a cena mostrada na figura 7 relaciona-se fortemente à farsa pela parte estética, e não pela ação ou pelos temas que conduzem o enredo.
No que se refere ao uso que a novela faz dos recursos cinematográficos, é fundamental avaliar a função do posicionamento da câmera, que pode corresponder ao narrador e à sua postura crítica sobre determinada ação ou sobre um personagem específico. Isso pode ser percebido na figura 8, na qual o casal Zelão e Juliana é valorizado não apenas pela câmera, que os focaliza de baixo para cima, mas também pela centralização dos personagens em meio ao cenário, pela teatralidade do beijo e pelo contraste de cores.
Nessa fase da novela, durante a estação do outono, o figurino de Zelão muda radicalmente. De acordo com a figurinista Thanara Schönardie, a transformação não condiz apenas com o novo cenário, mas também indica de que modo o perfil do personagem foi alterado pelo amor. O protagonista “perde as formas de caubói para ganhar as de um toureiro” (GSHOW, 2018). A profissional responsável pela nova roupa de Zelão explica em detalhes a mudança:
É por amor que ele está se alfabetizando e se tornando uma nova pessoa. […]. Ele fica muito mais sofisticado. Antes era aquele bonequinho de brinquedo rústico, primitivo, com as cores primárias, os materiais eram de plástico e borracha. Agora ele começa a ter tecido nas roupas, o acetato e os plásticos fazem a composição nos detalhes, que deixaram de ser brutos e ganharam riqueza. (GSHOW, 2018)
Outros recursos de forte apelo visual e que acentuam o artificialismo na segunda versão de Meu pedacinho de chão são: a) os diferentes formatos da imagem na tela; e b) a inserção de imagens de natureza distinta na mesma tela, que se divide. Exemplos desses dois itens são apresentados respectivamente, nas cenas reproduzidas a seguir:
Na cena dos dois casamentos, a relação tela/imagem utiliza a proporção 4:3, que reduz o tamanho da imagem, gerando tarjas negras acima e abaixo. Esse enquadramento contraria o padrão de tela cheia (que equivale à proporção 16:9) e isso impede que a cena representada extravase, confundindo-se com a sala de estar (e com a realidade) do espectador. Dessa forma, as tarjas servem de obstáculo para essa identificação e, por esse motivo, privilegiam o artificialismo, em detrimento da representação realista. Na outra imagem, dos carros, confrontam-se naturezas distintas de representação. Embora nenhuma delas seja suficientemente realista, pois o cenário é marcado por uma vegetação bastante artificial nos dois casos, percebe-se que o carro de brinquedo (em miniatura e colocado em uma maquete) ganha ênfase, pelo fato de aparecer na parte superior da tela.
Com relação a esse falseamento da realidade, a metalinguagem também desempenha um papel fundamental. No último capítulo do remake, o recurso metalinguístico é revelado, o que serve para justificar o parentesco da telenovela com o desenho animado. Nesse momento da história, Lepe aparece em seu quarto, manipulando minitotens dos personagens da novela (alinhando-os sobre as maquetes, movendo-os e os iluminando, como se estivesse em um estúdio improvisado). Por fim, ele se afasta e os observa usando uma luneta.
Somam-se, nesse instante, o distanciamento em relação ao texto e à realidade, pois esse é o efeito provocado pela metalinguagem, e a alegoria, presente nos contos de fada e nos desenhos animados, que, por sua vez, influenciam fortemente a produção de Luiz Fernando Carvalho. O fato de o diretor fazer menção ao processo metalinguístico, no final da novela, não é suficiente para elucidar o sentido das alegorias utilizadas ao longo da trama. Desvenda-se a técnica, mas isso não basta para que o telespectador consiga compreender o sentido de alguns temas discutidos pelo autor. A estética peculiar da nova versão de Meu pedacinho de chão dilui o conteúdo. A atmosfera de faz de conta e o acúmulo de cores e adornos desviam a atenção do público, tornando tudo mais belo e agradável. Afinal, esse é o efeito provocado pela alegoria, que nos remete “a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra” (ROUANET, 1984, p. 17). Walter Benjamin e Flávio Kothe também fazem referência à falta de clareza como característica inerente ao discurso alegórico: “[…] cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984, p. 197); “[…] a alegoria oscila entre dois pontos: apresentar sinais que revelem e explicitem o pensamento intencionado ou mostrar-se obscura, fechada, hermética, dificultando o acesso ao seu nível mais substancial” (KOTHE, 1986, p. 19).
No caso da telenovela analisada aqui, a mídia de maior destaque com certeza é o desenho animado, o qual possui estreita relação com as técnicas que são comuns a outras artes também visuais, como o vídeo, a fotografia e o cinema. A linguagem dos desenhos animados aparece, na produção de Luiz Fernando Carvalho, desde a abertura, evidenciando o artificialismo próprio desse tipo de mídia, sobretudo pela profusão de cores e pela representação não totalmente realista, em que predominam as formas genéricas, sem excesso de detalhes.
Nas cenas da novela, outras técnicas próprias do desenho animado são utilizadas, a exemplo da aceleração de movimentos com sonoplastia típica; do stop motion; e do time-lapse. Embora essas duas últimas técnicas sejam parecidas, elas têm diferenças. Enquanto o time-lapse constitui “um método de filmagem muito lento de ações, por meio de uma série de fotos isoladas, durante um período de tempo, as quais depois são reunidas, para mostrar a ação ocorrendo muito rapidamente” (CAMBRIDGE, 2018, Tradução nossa), o stop motion “utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes de um mesmo objeto inanimado para simular o seu movimento” (CIRIACO, 2018). Em resumo, o stop motion não necessita de fotos em intervalos regulares e não objetiva a aceleração ou o registro da passagem de tempo. Além disso, nesse processo, a câmera não precisa estar fixa. Em Meu pedacinho de chão (2014), o time-lapse foi utilizado em cenas que mostravam o amanhecer, o entardecer, ou o desabrochar das flores. Já o stop motion foi usado na animação do Galo Bené, que reagia aos momentos de tensão da trama, chorando, mostrando surpresa ou mesmo tapando os olhos6. O diretor de animação César Coelho explica melhor como esse personagem ganhou vida na telenovela: “Um galo dos ventos, no alto de um telhado, que sabe tudo o que se passa na Vila de Santa Fé. Esse é Bené, […]. Cada 18 segundos de cena […] correspondem a mais de 400 movimentos, o que consome, em média, três dias de trabalho” (MEMÓRIA GLOBO, 2018b).
Essa relação intermidiática da novela com todas as artes mencionadas nesta análise demonstra que o remake de 2014 faz a “remediação”7 (RAJEWSKY, 2005) não apenas das mídias emprestadas pela telenovela, com destaque para o desenho animado, mas também do formato tradicional da telenovela brasileira. Sendo assim, a linguagem das animações, quando utilizada pelo gênero televisivo, adquire nova função, ao mesmo tempo em que contribui para a revitalização da obra que lhe serve de moldura.
Por estarem inseridas na dinâmica de uma cultura, as tendências que preferencialmente se manifestam num gênero não se conservam ad infinitum, mas estão em contínua transformação no mesmo instante em que buscam garantir uma certa estabilização.
O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. (MACHADO, 2003, p. 68-69)
Em Meu pedacinho de chão (2014), com a proposta de uma nova estética, calcada na intermidialidade, é fundamental a não uniformização, para que a presença de mídias variadas e distintas seja percebida claramente. É justamente a diferença e a fronteira entre uma arte e outra que instituem um novo modelo textual. Irina Rajewsky pontua que, no processo intermidiático, devem ocorrer dois tipos de simulação: “[…] simulação das qualidades, formas e estruturas específicas de outra mídia, mas também a simulação de uma diferença midiática perceptível” (RAJEWSKY, 2005, p. 19). A remediação passa a ser, então, inevitável para a obra híbrida, que tem como pressuposto a combinação de artes e mídias, e para a renovação dos modelos tradicionais, pois a experimentação de outros recursos e de linguagens distintas propicia a revisão e o aumento das possibilidades estéticas daquele gênero que, consciente de sua obsolescência, teve a ousadia de conhecer outras formas artísticas e de comunicação e, a partir delas, fazer empréstimos e adaptações, em prol do aprimoramento técnico.
Notas
1 Artigo vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia da Silva Cardoso. O mesmo texto também está publicado em: https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes
2 Apesar de esteticamente a versão de 1971 obedecer ao formato tradicional das telenovelas brasileiras, a produção inovou na temática, razão pela qual foi considerada a “primeira novela educativa da TV Globo”, porque “transmitiu informações sobre vacinação, desidratação infantil, higiene e técnicas agrícolas, além de abordar o problema do analfabetismo no campo, levando personagens adultos às salas de aula” (MEMÓRIA GLOBO, 2018a).
3 Enquanto a minoria dos telespectadores de Meu pedacinho de chão (2014) encantava-se com o lúdico e a novidade das imagens artificiais ou inusitadas, a maioria estranhava o novo estilo e reivindicava o padrão tradicional das telenovelas. De acordo com os dados oficiais: “Meu Pedacinho de Chão teve a pior estreia de uma novela das seis desde o ano 2000, 17,6 pontos, segundo o Ibope” (VEJA, 2018, grifo no original). Essa informação não apenas demonstra o impacto que a nova estética teve sobre a audiência. Ela também comprova que a opção da Globo, de romper com a tradição, não condiz com os números positivos da emissora, quando o assunto é telenovela, gênero exportado para 128 países, de acordo com Melo (1988). “Começaram pela América Latina, é claro, e logo chegou a vez da Itália, Portugal e França. […] atravessaram a Cortina de Ferro, conseguindo índices recordes de audiência na Polônia e na Hungria. Também estão presentes na África do Norte e no Líbano. O último território conquistado é a China […]” (MELO, 1988, p. 39). Além disso, registre-se que a Globo, desde 1976 até o fim de 2016, já contava com 16 prêmios Emmy, sendo 7 deles para a categoria de Melhor Novela, que estreou na premiação recentemente, em 2009 (GLOBO, 2017).
4 As figuras apresentadas nesta página são fotografias tiradas pela autora deste trabalho, durante a exibição do último capítulo da novela em análise. Isso também se aplica a todas as figuras que apresentarem na fonte, entre parênteses, as informações “MEU PEDACINHO, 2014”.
5 Sobre a farsa, Moisés também faz referência à simplicidade na forma e à realidade cotidiana. Tais características relacionam-se de modo coerente com as afirmações de Melo (1988), para quem a novela brasileira tradicionalmente obedece a esses dois aspectos, como citado no início desta análise. Entretanto, no remake de Meu pedacinho de chão, pode-se afirmar que o uso da farsa pela simplicidade e pela relação com a realidade cotidiana foi esvaziado pela estética inusitada, que contrariava totalmente esses propósitos.
6 O stop motion também foi a técnica usada na animação das cenas que envolviam a maquete com o trem de brinquedo.
7 Irina Rajewsky associa “remediação” e “remodelação midiática”, afirmando que as mídias atuais “não só prestam homenagem às mídias anteriores, mas também se rivalizam com elas, ‘apropriando e remodelando as práticas representacionais dessas formas antigas’” (RAJEWSKY, 2005, p. 58, grifo no original).