Dalton Trevisan e a literatura do contra, por Verônica Daniel Kobs
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HISTÓRIAS DE DALTON
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs¹
João e Maria: infelizes para sempre²
Fazem parte da mitologia daltoniana os personagens João e Maria, que, apesar de serem nomeados, são gerais, anônimos, estereótipos que se enfrentam diariamente, na interminável guerra conjugal. Dalton Trevisan dessacraliza o casamento e revela a violência, as frustrações e a infelicidade da vida privada. No que diz respeito às relações conjugais e familiares, os contos do escritor guardam estreito parentesco com as crônicas policiais, que denunciam a violência doméstica, a infidelidade e os crimes passionais. Até mesmo o exagero que caracteriza os textos jornalísticos que fazem uso desses temas está presente na literatura de Dalton Trevisan, com o intuito de chocar o leitor, pelas minúcias da ação, que se apresenta crua, violenta, repleta de agressões físicas e morais. As relações de alteridade que aproximam e distanciam o casal revelam o outro como ameaça. O ser amado torna-se uma espécie de inimigo íntimo, como ressalta João Manuel Simões:
A ficção de DT é, de certo modo, o corolário dialético da tese enunciada e demonstrada ad nauseam por Kean-Paul Sartre: “l’enfer sont lês autres”. E os “outros”, no universo contido, transitorizado que DT arquiteta, chamam-se via de regra João e Maria. Pobres joões e marias que se multiplicam ad infinitum, na sua insignificância de seres marcados, estigmatizados, predestinados para as pequenas tramas nos labirintos de um cotidiano de terceira classe. De um cotidiano barato. (Simões, João Manuel: 1980)
O cotidiano e o corriqueiro não costumam chamar a atenção. Muito menos são características facilmente associadas à arte, pela maioria das pessoas. Evidente que isso se deve a certo ranço da concepção já ultrapassada e elitista de arte. Ainda assim, o fato é que pouco as pessoas se detêm sobre o que é costumeiro e repetitivo, porque é intensamente vivido no dia a dia.
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¹ Professora Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: verônica.kobs@fae.edu
² Excerto do artigo intitulado Dalton Trevisan e a literatura do contra, publicado na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea 11 (UFRJ), em 2014.
Todos parecem estranhamente acostumados à rotina social. Mas Dalton Trevisan interrompe esse processo de alienação, ao trazer o cotidiano banal para o contexto literário. Ele obriga o leitor a se deparar com a vida infeliz de João e Maria, que passa a ser percebida em cada detalhe sórdido. Nesse aspecto, o cotidiano se insere perfeitamente na estética kitsch, conforme postula Abraham Moles: “Não existe ser humano, artista, asceta ou herói que não tenha algo de Kitsch na medida em que seja cotidiano” (Moles, Abraham: 1972, 224). Essa associação da representação do cotidiano conjugal e do kitsch também é mencionada por Leo-Gílson Ribeiro, no texto “O vampiro de almas” (1995):
A grandeza de Dalton Trevisan está em dar à literatura urbana do Brasil talvez a mais insólita e pungente Seleções do Kitsch já reunidas nas Américas. (Ribeiro, Leo-Gílson: 1995)
São álbuns de instantâneos do brasileiro, ser universalizado pelo estilo perfeito deste “vampiro de almas” e radiologista da psique deste povo feito de Joões e Marias amantes e desamados. (Ribeiro, Leo-Gílson: 1995)
Observação e descritividade fazem de Dalton Trevisan um voyeur, condição que ele transfere ao narrador e ao eu-lírico de seus textos e também ao leitor. Todos assistem à vida diária com o olhar contemplativo que garante a surpresa e o impacto, bem como assegura a apreensão de instantes transpostos da realidade para a ficção e percebidos apenas graças a essa transferência. Do contrário, continuariam invisíveis, enquanto que o leitor permaneceria alheio, em sua habitual zona de conforto.
Pela estilização, que pode ser entendida, de modo simplificado, como uma tentativa de imitação, a literatura daltoniana se baseia nos noticiários da imprensa sensacionalista, que, por sua vez, se baseia na realidade. Apesar de sempre existir um filtro que acaba por distorcer a realidade, o fato é que a refração do que é real também existe e pode ser percebida no jeito de ser, de falar, de vestir dos personagens. No texto “Batalha de bilhetes” (1995), por exemplo, o escritor opta pela estilização da linguagem escrita, ao fazer que os protagonistas da história travem uma divertida e sórdida guerra, em que cada frase escrita, cada xingamento e cada gesto, que não passam de clichês, em vez de esvaziarem a narrativa, fazem-na repleta de significado, representando uma identidade popular e impossível de ser negada, pela repetição e pela amplitude que a caracterizam:
[…] devorou sete sonhos afogado de esganação, o que lhe provocou visitas ao banheiro com passo miudinho de gueixa.
Chá de erva-de-bicho, meu velho? – o bilhete insinuado sob a porta.
Apoiado na parede, arrastou-se pé ante pé:
Não preciso do seu chá, desgraçada.
Molhou a língua na ponta da caneta e, deliciado, arranhou o papel com medonho garrancho:
P. S. Tenho outra mais moça. (Trevisan, Dalton: 1995, 131)
O escritor Dalton Trevisan, em foto antiga (Foto: Dedoc/Editora Abril) |
Os trechos em itálico são os bilhetes que expressam a voz e o conflito dos personagens. Os préstimos e a preocupação da mulher são retribuídos com o insulto e com a confissão de infidelidade do marido, o que revela a teimosia gratuita do homem. A situação é trivial, assim como a linguagem usada pelo casal. Mas o narrador adota o mesmo posicionamento, ao selecionar e informar gestos e ações que intensificam o teor cotidiano da história, aspecto que é destacado pela gulodice do marido, pelas visitas ao banheiro e até pelo gesto de molhar “a língua na ponta da caneta”.
Ao romper com a expectativa do leitor e fazer o personagem do marido não corresponder à atenção e ao cuidado da esposa, gera-se o riso, que é simultâneo à perplexidade pela gratuidade do ataque moral, que chega ao cúmulo de o marido revelar ou inventar que tem uma amante “mais moça”.Efeito parecido é provocado por este miniconto, sem título:
Nhô João, perdido de catarata negra nos dois olhos:
– Me consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem. (Trevisan, Dalton: 1996, 42)
Nesse texto, o elemento surpresa também é utilizado e esse artifício é o que provoca a inversão da ideia de casamento feliz e respeito, depois de uma vida inteira compartilhada. A falta de amor e de desejo pela companheira acaba transformando a catarata em uma bênção. É nesse ciclo vicioso e infeliz que convivem os personagens de Dalton Trevisan, que não vivem bem juntos, mas que, paradoxalmente, são incapazes de abandonarem um ao outro.
Sem a estranha dualidade dos textos anteriores, seguem outras três amostras da literatura de Dalton Trevisan e que opõem João e Maria, dessa vez no conto intitulado “Morre, desgraçado” (1996). Os fragmentos chocam pela exposição da violência familiar, sobretudo física, no melhor estilo sensacionalista:
[…] um coice me jogou contra a parede. Não contente, passou a mão no rosário pendurado na cabeceira, malhou a minha cabeça, só conta negra por todo canto.
– Corra, mãe. Que o pai te mata. (Trevisan, Dalton: 1996, 8)
[…]. Pegou a vassoura atrás da porta e me encheu de pancada. Me desviei, a criança ali nos braços, o cabo deu no canto da mesa e se quebrou.
– Aí, cavala. Viu o que fez? Agora me paga. (Trevisan, Dalton: 1996, 9)
– Me mate, mulher. Senão você morre.
Saía sangue pelo nariz e a boca. Meio que se aprumou:
– Se me levanto, diaba, é o teu fim.
Suspendi a acha, fechei o olho, dei o terceiro golpe.
– Morre, desgraçado.
A força de mãe foi que me valeu. (Trevisan, Dalton: 1996, 10)
Nesses trechos, a agressão é combinada a elementos familiares (o próprio marido investe contra a mulher e o filho do casal interfere) e religiosos (a mulher é surrada com um rosário), o que confere sensacionalismo às cenas. Além disso, há o exagero da descrição detalhada, que reitera o tom sensacionalista. Ao final, a esposa já responde às agressões. A luta atinge seu ápice e matar é o único modo de a mãe e a criança sobreviverem. Do tragicômico dos textos mencionados anteriormente passou-se à tragédia, simplesmente. A violência incitada pelo marido e que surge para a mulher em tom de obrigação, para se manter viva, provoca um crime passional. O último período do conto (“A força de mãe foi que me valeu.”) surge com a pretensão de justificar o assassinato e de amenizar o final trágico, mas esse eufemismo não se cumpre. Pelo contrário, ele aumenta a angústia do leitor, que, como se não bastasse o fato de ser confrontado com a violência, em seu auge, flagra a si próprio no mau ato de tentar desculpar o que não tem explicação. A força da história, perpassada pela inevitabilidade, é artifício do narrador (e de Dalton) e surge de modo proposital, para fazer o leitor perceber, por meio da literatura, o absurdo que as pessoas não são mais capazes de captar, no contexto jornalístico, informativo, em que as tragédias se diluem em meio a tantos outros crimes.
Referências
MOLES, Abraham. O kistch: a arte da felicidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
RIBEIRO, Leo-Gílson. “O vampiro de almas”. In: TREVISAN, Dalton. Guerra conjugal. 10. ed. rev. Rio de Janeiro: Record, 1995, não paginado.
SIMÕES, João Manuel. “Dalton Trevisan: Périplo (com escalas) em torno de um continente”. Revista da Fundação Cultural de Curitiba, abr. 1980, pp. 12-14.
TREVISAN, Dalton. Guerra conjugal. 10. ed. rev. Rio de Janeiro: Record, 1995.
_____. Pão e sangue. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
Por: Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs