Canção Universal, por Wagner Schadeck
Na antiguidade, acreditava-se que a música tinha poder medicinal sobre a alma. Críticos como Carpeaux e Auerbach ouviam o canto gregoriano no cantar dos anjos no Paraísoda Divina Comédia de Dante Alighieri. No Werther de Goethe, o enamoramento do protagonista se dá pela música. Beethoven, ao visitar uma Baronesa, amiga sua que havia perdido o filho, vitimado pelas guerras napoleônicas, fora comedido em palavras e gestos, mas sentara ao piano e tocava até consolar a alma aflita daquela mãe…
Arte da palavra, a poesia também está próxima dessa arte espiritual.
Em Auto da Romaria, João Filho nos impressiona pelo fôlego e pela música. Ao contrário de boa parte da anemia poética que tem assolado nossa poesia, nesta obra o poeta baiano apresenta uma das mais profícuas líricas da nova geração.
Como uma peça musical, o livro está dividido em partes que poderiam bem se chamar movimentos: Margem direita, São Francisco, O monge e o monsenhor, Margem esquerda. Dentro da poética de João Filho o termo musicalidade seria impreciso. Por musical entendemos elementos de recorrência, consonância e retorno, como rimas e paralelismos sintático. Por ex. a contragosto do poeta, as quadras cabralinas são musicais, embora truncadas. É exatamente o contrário do que ocorre com a lírica de Cecília Meireles, a qual utiliza as rimas toantes, mas com uma sintaxe diáfana.
Herdeira de Cecília, a poética de João Filho mantém a maviosidade, inclusive no uso de rimas toantes, mas a composição estrófica, o fluxo de imagens e palavras, com uso deliberado do enjambement, é algo sui generis. É o que ocorre mesmo em redondilhas:
“Romeiros sem estrada,
Os seus caminhos d’alma
Jamais são vagos
Na aparência calma
Da pobre esplanada
– do seu semi-arco,
Veem-se o rio e a tarde,
Sua trilha de luz
No espelho d’água
Onde passa o barco…”
(A gruta e o morro, I)
Esta poética se aproveita do prosaico, no sentido de linearidade da prosa, recurso típico da modernidade, para abarcar o fôlego na execução desta enorme peça musical – a narratividade. É a acústica retirada no coração da vida:
“Depois do Cruzeiro,
A pedra que soa,
E soa o destino
De qualquer pessoa…”
(A pedra que soa)
“As lições desafinadas,
Semifusas na memória,
O menino é a nota máxima
Na constante palmatória…”
(O ex-violinista)
“O silêncio é custoso – fez-se ouvinte
Da música da rocha…”
(São Francisco)
Poeta-cantor, neste Auto da Romaria, João Filho canta as memórias íntimas, suas e as de outros, fazendo com que elas ecoem no universal. Herdeiro de Cecília Meireles e Jorge de Lima, sua poesia é transida de religiosidade, como podemos ler na admirável coroa de sonetos intitulada Nosso Senhor dos Passos, sobre a Paixão.
XIII: Descida do corpo de Jesus da Cruz
Quando o corpo é menor que o próprio corpo,
A luz se densifica e amadurece.
O céu, a via, o ar cessam todo o esforço,
E não há coração que não confesse.
Essa leveza, menos do que um corpo,
Rege as estrelas, átomos e preces;
Séculos vão e vêm – são seus esboços,
E se ela aparecer, tudo perece.
A Esperança, descida do madeiro,
Agora repousa, é leve ao descer.
– Linho o mirra aos despojos do Cordeiro,
As mãos que o amparam, Ele as abençoa.
Cadê, morte, teu látego? Porque
Nos passos da Paixão a dor perdoa.
No coração do livro, a dividir as margens, convém destacar a grande evocação ao rio São Francisco:
“… Naquelas ilhas, daquele outro lado –
À meia-luz da lua não podem ser vistas,
Somente imaginadas –, há dois povoados;
Ali, perdido como quem se autodespista,
Fui o que não sou, fui o que fingi. […]
Assim nasci – no século-jazigo,
de início, eu me perdi…..”
É motivo metafísico de Heráclito, Camões, T. S. Eliot, Ivan Junqueira, entre tantos outros, mas que no Auto da Romaria ganha o aspecto confessional, aberta na memória religiosa em terza rima:
“O São Francisco vibra à febre da estiagem,
Ó correnteza – dessedenta dores, penas,
Das vidas que se afligem pelas margens…”
A voz confessional se irmana com as demais vozes dos romeiros em procissão. Daí a importância simbólica de purificação desse rio – lembremos que Beatriz exige que Dante se lave antes de ascender entre os anjos!
“Piedade lavou tamanha errância,
Esperança me abriu as suas frondes.
[…]
Em Bom Jesus da Lapa, a luz fomenta
Os fios fundadores de mistério.
Almas em romaria vêm chegando,
É quase dia seis, o dia sério…”
Em O monge e o monsenhor temos a poesia dramática na alteridade nas vozes que se apresentam. Mas o que queremos destacar é o conjunto de canções da Margem esquerda, que confirma a composição musical e unitária da obra.
Totalmente ignorada em nossas universidades, onde, ao que parece, só têm proliferado o cientificismo malsão e seitas políticas, este livro é um testemunho de nossa enorme e rica tradição de poesia religiosa.
Wagner Schadeck nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) entre outros periódicos. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera. Pela mesma editora, publicou, em 2017, a tradução completas das Odes, de John Keats.