Escrita Noturna – por Aline Bei
risco um fósforo enquanto penso no texto que descansa
na folha,
tem alguma coisa nele que está fora do lugar, alguma descrição, talvez
do bairro que o personagem visitou.
digito no google o nome da rua:
passo
de foto em
foto
nenhuma me diz do cheiro que a noite tem ali, da cor das crianças quando dormem se elas
amarelam, do nome do dono do pub,
já sei.
meu personagem vai passar a noite sozinho no hotel
muito cansado depois da festa
por isso
ele vai dormir rápido
e de terno
enquanto a prostituta
do outro lado da cidade
toma coragem pra
discar um número, mas
não disca. é,
ela não disca, e assim eu não preciso me preocupar com a vista da janela. prefiro pensar nos meus personagens por dentro, investigar a vida interior que eles têm, porque as cidades não são nada
sem alguém olhando pra elas
não há descrição que fuja
do estado de espírito de quem as descreve.
(latidos na rua)
apago o fósforo.
acendo outro, eles sempre me ajudam a dissecar um texto, eles são a minha luz de cozinha. a prostituta, olho pro fogo pensando, vai se matar nesta noite, será que fica muito trágico? a maquiagem borrada na banheira. as olheiras enormes e cintilantes.
na exposição da Yoko Ono
eu li em uma das placas
exatamente isso
Acenda um fósforo.
nunca tinha lido antes qualquer coisa a respeito da força de um pequeno fogo ainda controlável nas mãos, o fazia intuitivamente
para me arejar os pensamentos
e a Yoko também
e quantas pessoas mais, ou seja, somos tão parecidos, alguns de nós.
ontem
eu disse para um amigo sobre o quanto a gente era diferente, ele riu. não concordamos em praticamente nada, nem nisso,
mas nos damos relativamente bem. apesar que
meu amigo
não me sai da cabeça
fico tentando entender como cabem aquelas opiniões nele sem doer, às vezes penso que ele está dizendo o contrário só pra me provocar
como se tudo fosse sobre mim
sendo que na verdade ele nem é exatamente meu amigo. não ligamos um para o outro quando temos problemas, ele está precisando de dinheiro e eu
não emprestei. ofereci carona e ele não quis. queríamos transar, há uns meses.
acabou não indo pra frente
então estamos
com essa amizade arrastada
com ele me dizendo o que não cabe na minha boca, gosto mais quando encontro semelhanças
porque a única coisa que sei amar é a mim mesma.
(alguém dá partida no carro)
apago mais um fósforo. na mesa
uma coleção
de palitos queimados. ajusto mais alguns detalhes no texto, distancio em léguas os personagens, penso agora em colocar cada um em um país. a puta
já é um cadáver na banheira, o homem
está roncando na cama. de barriga pra cima. com sapato no pé.
tem
um ponto de encontro
entre essas
duas cenas
a morte e o sono, o pau mole, o seio inerte. a água da banheira balança levemente por conta do vento, ela esqueceu a janela aberta. então, de vez em quando, o bico
do peito dela fica
de fora. na cena dele, no hotel, começa a chover. ninguém acorda. por enquanto nenhum dos dois acordarão. leio o texto
mais uma vez.
não é um poema
nem um conto
e ainda está faltando
alguma coisa. um encaixe. talvez
um título, vou dormir um pouco, quem sabe amanhã
eu acorde com uma ideia. tendo tido sonhos tão estranhos. noite passada mesmo
sonhei que meu pai esmagou uma borboleta pra mim
e depois que a minha amiga tinha amputado as pernas.
dei google e
sonhar com borboletas
é aparentemente bom, não sei se esmagadas, não tinha no site esmagadas. agora com amputação
já não era tão bom assim, representava que a vida estava me tirando coisas importantes,
é claro que a vida está me tirando
coisas importantes, respondi pro site, não é assim com você também?
desliguei o computador.
deitei na cama
e de repente me veio
a preocupação de onde
vou estacionar o carro amanhã naquele evento que não tem estacionamento
nem lugar na rua
vou ter que
andar sozinha de madrugada por um trajeto
longo
será que no fundo é tudo medo de morrer?