Um poeta de classe

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De um modo geral, Chesterton distinguia na sociedade três classes de pessoas. A classe do povo, a dos poetas e a de cientistas e intelectuais. De maior valor, a primeira classe é responsável pela produção. A ela em alguma medida pertencemos todos nós. Como um mal para suas famílias, ainda que um bem para a humanidade, a segunda classe é responsável pela expressão do sentimento popular. A ela pertencem aqueles que, “tendo cultura e imaginação, usam-nas para compreender e compartilhar o sentimento de seus companheiros, ao contrário daqueles que os usam para conseguir o que eles chamam de ‘subir a um plano mais elevado’”. E, por fim, a terceira classe, um tormento tanto para as famílias quanto para a humanidade, define-se pela insensibilidade em relação ao povo.

 

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Em termos simples, o poeta difere do povo por sua sensibilidade, os cientistas diferem do povo por sua insensibilidade. Eles não têm sutiliza e sensibilidade suficiente para simpatizar com as pessoas comuns. Seu intento é apenas contradizer o povo, ignorá-lo, conforme seu próprio plano egoísta, para mostrar a si mesmos que o povo está errado, independente do que diga. Esquecem que a ignorância tem, muitas vezes, as intuições requintadas da inocência.

 

Além disso, Chesterton tem razão ainda quando afirma que:

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Os poetas fazem com que o povo se sinta mais sábio do que jamais poderia imaginar. Há muitos elementos estranhos nessa situação. O mais estranho de todos talvez seja o destino desses fatores no contexto político. Muitas vezes, os poetas que abraçam e admiram o povo são apedrejados e crucificados. Aos tolos que depreciam o povo, geralmente são lhes dado terra e coroa.[1]  

 

Na história de nossa poesia, vemos que a criação de uma poesia científica – do parnasianismo e da escola de Martins Jr. à tecnocracia concretista – alimentou tão somente a ociosidade de pedantes narcisistas, encerrados em si mesmos, aprofundando ainda mais o abismo entre o povo e a cultura. E por outro lado, os nossos poetas mais populares – Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Drummond, Quintana, entre outros – sempre apresentaram uma poesia pontífice. Convém lembrar que poesia do povo não é “democrática”, nem mesmo partidária, tampouco “conscientiza as massas”; é uma poesia que encerra o paradoxo do ser: o limite e a ultrapassagem. É uma ponte que demarca o “senso-comum” e o eleva para a alta cultura.

Desta forma, a poesia de Florisvaldo Mattos pertence à melhor estirpe de poetas do povo. Nela vemos quatro fases: a primeira, de uma feição simbolista e surrealista ­– afinidades que jamais o abandonarão; a segunda, histórica e regional; a terceira, de cunho social ou engajado; e a quarta, com o anelo pela vida e a celebração da amizade.

São elementos mais recorrentes dessa primeira o marítimo e o telúrico:

 

Apenas tempo

……. mar e eco

dissolvo-me em fronteiras

de penumbra e ausência.

(Limites do Mar – Noticiário da Aurora: 1952-1954)

 

Amarescentes reses

bois de amaranto…

(Boi e Cavalo como Nave – Agrotempo)

 

Na segunda fase, no entanto, o poeta filia-se à nossa bela tradição de poesia histórica, dos cancioneiros até Cecília Meireles.

 

Rei, reino meu terço de chamas, reino

Ausente de escrituras. Sesmarias

Reúno, trituro búzios cor de níquel,

Virgens de passo e voz, estranho aquário.

(Segundo Monólogo – Reverdor)

I.

Mar de cinza escuro e sal vestido,

Vasto céu de azul e balaiadas,

Do norte venho no bambaê das ondas;

É o sol que mal me acorda, cerca-me

Um signo de fimbria expectante:

Mui outrora idos, ávidas falas.

(Mares anoitecidos)

 

Mas à medida que se distancia do verso experimental e da poesia das coisas do primeiro momento, o poeta baiano volta-se ao debate público da Ágora. Com Fábula Civil, o “Agrotempo” dá lugar ao “Antropoema”; e o marítimo e o telúrico, à cidade.

 

…… Sou todo companheiros.

………………………..

………………………..

faço do amor aos outros meu caminho.

(Massa)

 

Nesse livro nota-se a evocação do sentimento do mundo, embora não deixe de apresentar marcas coloquiais, como em:

 

…as mulheres voltavam com os meninos.

 

Mas é, sobretudo, uma poesia inundada pelo contingente:

 

…os preconceitos rimavam com a economia.

(Galope Amarelo)

Os engenheiros rasgam

o ventre da cidade.

(Canteiro de obras)

 

É também o canto aos homens do presente, indicando o futuro.

 

Algo nascerá de tua boca

afogada no ópio certamente:

uma máquina, um homem talvez.

(Festival)

 

Poema central é o homônimo Fábula Civil. Trata-se uma narrativa sobre as ruínas do templo (possível referência à civilização ocidental) e a sua reconstrução pela mesma juventude que o destruiu. Numa espécie de julgamento/assembleia, as crianças falam:

 

“Levanta-se no lugar um templo novo

de tamanho que sirva para todos

e se lhe dê de destino outro uso.

Se possível que não tenha paredes,

nem portas, nem janelas, nem telhado.

Seja o ano inteiro uma área livre

para todos os homens para sempre.”

 

Os juízes romperam indignados:

“Quem poderá contruir um templo desse?”

Os meninos foram novamente unânimes:

“Nós. Nós que vivemos neste lugar.”

 

É o poeta falando aos iconoclastas de seu tempo. Aí essas crianças sem faces, feitas tão somente de discurso. Elas não têm identidade; têm anseios. Desejam o niilismo e querem efetivar a mensagem da utopia socialista. Esse poema testemunha os planos de uma geração que queria reformar a humanidade e o país. Seriam esses jovens sonhadores os mesmos que tomaram nosso estamento burocrático? Eis uma questão que esse poema suscita para a classe de cientistas políticos e intelectuais, aos quais, como lembra Chesterton, também chamamos de “pensadores”…

Ao contrário dos homens dessa classe, preferimos-lhe a poesia marcada pelo cotidiano e pela infância – uma autêntica poesia do povo. Nela o poeta liga o particular ao universal, tendo por ex. o “cacau” como símbolo. Nela ainda encontramos momentos admiráveis, como amores do poeta pelas artes plásticas, o cinema, o futebol e o jazz:

 

Começo por lembrar Louis Armstrong,

King Oliver, Sidney Bechet e o gong

De Big Sid Catlett; sigo um fundo vale

(de lá a Nova York, nada que me cale):

Hawkins Body and Soul arrebentando,

nos criativos trinta do suingue, quando

reinam Flecther e Jimmie Lunceford,

a nova ordem do bom para o melhor.

Invoco Hodges, Bigard, repito Blanton,

o trombone vodu de Trick Sam Nanton,

no rastro de Bix, Basie, algo que fungue

o pescoço da aurora, até Lester Young,

príncipe do langor; alas ao bebop

e a quem que na caudal surja alto e tope

com Dizzy, Parker, Monk, Powell, Mingus,

que ao jazz raspam a face de domingos,

ou reste apenas nos flancos dessa grei

espaço à prata e o ouro de Billie Holiday:

corça, escapa entre dédalos de pedra,

tênue haste, mais Ofélia do que Fedra.

(Saudades do século XX – Mitologias: II – Indícios de ouro, acordes na jângal)

 

Nessa fase, Florisvaldo consolida-se como um exímio sonetista.

 

SANTIAGO DE COMPOSTELA

Quando pelos caminhos se levanta

A poeira das peregrinações;

Quando eu rota de estrelas e canções

A pedra perpetua e evoca a santa

Aparição da Luz que atraiu reis,

Santos e papas hoje sepulturas;

E torres arremessam às alturas

O vigor dos mistérios e das leis,

Que os arcebispos no calor das guerras

Edificaram pela fé em Santiago,

As igrejas, os cruzeiros e as terras

 

Em redor, e o momento tem nos sinos

A memória de um claro instante mago,

A humanidade fala pelos hinos.

(Imagens da Terra)

 

São característicos também da sensibilidade poética de Florisvaldo Mattos o intimismo e a memória:

II

Na manhãzinha de um verão defunto,

Repisando palavras, conselheira,

A mãe urdia na hora de partida,

Igualmente a um martelo na bigorna:

“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.

A luz do livro guia o pensamento”.

Os dias disparando na folhinha,

Subo no trem e vou para Água Preta.

Trilhos rangem. A máquina resfolga,

Bafejando fumaça nos dormentes.

Como a vida, o trem passa e passará.

Chegar, parar, partir, é o seu destino,

Sem que perdure vivo nos apitos

O pranto que ele deixa para trás.

(De prantos na folhinha – Estatuário dos dias…)

 

É quando o poeta baiano transforma as lembranças em símbolos que percebemos que Chesterton está certo. Aí adentramos no reino da poesia, de que falava Drummond. Há nessa última fase florisvaldiana um anseio vital, sorvida pelos sentidos. Grande poeta de sua geração, a poesia de Florisvaldo Mattos habita o coração dos homens de todos os tempos.

 

[1] G. K. Chesterton. Os Três Tipos de Homens. Tradução: Agnon Fabiano. Alarmas e Digresiones, Coleção Austral, p. 98.

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