Antonio Candido: Fragmentos de uma releitura

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Antonio Candido: Fragmentos de uma releitura 1No dia 12 de maio deste ano, foi divulgada a notícia da morte do crítico Antonio Candido, que estava prestes a completar 99 anos de idade. Arrisco dizer que o último grande evento literário de que Candido participou foi a Flip de 2011, comprovando sua intensa atividade. Com uma produção incessante (considerando livros, artigos, capítulos, e textos para jornais), o escritor nos deu centenas de obras fundamentais para a literatura, acompanhando a história e aplicando a teoria. Inclusive, muito em breve, o autor nos brindará com o lançamento póstumo de um texto inédito, que ele dedicou ao colega e ex-aluno Alfredo Bosi.
Quando ouvi a notícia da morte de Antonio Candido, lembrei que, apenas dois dias antes, eu tinha relido dois textos dele, os quais considero essenciais: “A literatura e a formação do homem” e “O direito à literatura”. O crítico e todos os textos dele são presença constante em minhas aulas e em meus artigos. Talvez, essa predominância seja uma questão de afinidade, crença, modo de pensar… De ideologia, enfim! O fato é que sempre procurei ler os textos de Candido e entendi, por intermédio deles, que a literatura e a arte em geral têm uma função social em todas as ocasiões, afinal, não é necessário que haja militância; basta apenas que a obra exista em determinada época e em um contexto específico, pois isso significa que ela corresponde ao seu meio e ao seu tempo. Por isso ela é o que é e foi lançada naquele exato momento: “[…] podemos abordar o problema da função da literatura como representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade” (CANDIDO, 2017).
Depois de pensar em como e em que medida minhas análises literárias foram e continuam sendo influenciadas pelos pressupostos do crítico recém-falecido, decidi revisitar minha própria “obra”, à luz de Antonio Candido, em uma tentativa de homenageá-lo e de registrar a importância do trabalho dele para a crítica, para a literatura, para a sociologia, para o jornalismo cultural e até mesmo para a história e para a política. Comecei a buscar meus escritos, depois de definir o critério que eu deveria seguir: elegeria apenas as análises que citavam os textos do crítico de modo efetivo. Creio que fiz um apanhado razoável e é isso que compartilho neste texto, sempre optando pela transcrição do texto de Antonio Candido, seguida de uma parte breve, na qual explico como utilizei as ideias dele.
Parte I
[O parasitismo] incapacita a sociedade para os regimes que possam assegurar progresso e liberdade. (CANDIDO, 1993, p. 137)
Relacionei o trecho acima à obra Iracema, de José de Alencar, que delineou o que o autor romântico chamou de “projeto americano”. Como se sabe, o Romantismo veio logo após a Independência do Brasil e teve a difícil tarefa de tentar consolidar uma autonomia cultural em nosso país (a qual deveria, por sua vez, estar atrelada à autonomia política). Porém, a situação era mais do que desafiadora, em se tratando de uma ex-colônia, que sempre dependeu do modelo do colonizador, mas que agora tinha de aprender a “ser”, longe da sombra do europeu, razão pela qual Alencar, em Iracema, recorreu aos elementos autóctones (o índio, em meio à fauna e flora exuberantes), inconfundíveis na expressão da brasilidade, já que representavam a nossa identidade pela diferença que estabeleciam com a cultura europeia.
A ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social. (CANDIDO, 1989, p. 141, grifo no original)
O fragmento acima me serviu para comentar o indianismo de Alencar e de Gonçalves Dias, durante o Romantismo. Ambos os autores resgataram o mito de que o Brasil era, de fato, o paraíso na terra, já que, na esteira das cartas e dos relatos feitos no século XVI, os estrangeiros se mostravam positivamente surpresos com a nudez dos índios (que, para eles, indicava ingenuidade, pureza e falta de malícia) e com a abundância de espécies de aves e plantas, sobretudo, que coloriam o ambiente selvagem, encarado pelo estrangeiro como um território extremamente rico, esplendoroso e exótico. Nesse aspecto, salienta-se que o exotismo corresponde à diferença, afinal a identidade se consolida por meio da alteridade e da percepção do que é diferente no outro.
Parte II
No Brasil, havia um certo constrangimento em relação a tudo que era popular — negros, mestiços, índios, cultos de raízes africanas, etc. Por uma espécie de “vergonha”, apelava-se a uma idealização. (CANDIDO, 2000, p. 82, grifo no original)
No início do século XX, os modernistas, especialmente o autor Mário de Andrade, dedicaram-se à “remodelação da identidade nacional” e, por essa razão, o projeto americano de José de Alencar foi revisitado. O resultado dessa retomada pode ser verificado em Macunaíma, pois, na rapsódia, o escritor modernista tenta incluir as ausências que constatou na obra alencariana. Além disso, por meio da publicação dos manifestos (com destaque para o Regionalista, escrito na década de 1920, mas publicado apenas nos anos 1950) e das obras que corresponderam à segunda fase do movimento, o modernismo reagiu à vergonha e ao constrangimento (mencionados por Antonio Candido, no trecho transcrito acima), a fim de demonstrar  a importância da mestiçagem na formação cultural do Brasil. Dessa forma, pode-se afirmar que o modernismo investiu em duas frentes que foram decisivas para reverter o complexo de inferioridade e negação descrito por Candido: o “branqueamento” e a desalienação.
Parte III
Essa comicidade foge às esferas sancionadas da norma burguesa e vai encontrar a irreverência e a amoralidade de certas expressões populares.  Ela se manifesta em Pedro Malasarte no nível folclórico e encontra em Gregório de Matos expressões rutilantes, que  reaparecem de modo periódico, até alcançar no Modernismo as suas expressões máximas, com Macunaíma e Serafim Ponte Grande.(CANDIDO, 1970, p. 88)
Com base nessa afirmação do crítico, sobre a malandragem em nossa literatura, analisei Macunaíma, entrelaçando o perfil do protagonista a João Grilo, personagem de Ariano Suassuna, e Zé Carioca, idealizado por Walt Disney, em 1940. Nos três exemplos, a malandragem adquire contorno positivo, contribuindo de maneira fundamental para o ideal modernista, que consistia em se opor à vergonha e ao preconceito que os próprios brasileiros demonstravam em relação a algumas características que se consolidavam pouco a pouco, na identidade nacional. Macunaíma, fazendo bom uso de sua malandragem, consegue derrotar o gigante inimigo. João Grilo sobrevive, porque sabe usar sua esperteza, a qual, aliás, na cena do julgamento, garante que ele volte à vida, por intercessão de Nossa Senhora. E Zé Carioca, em uma sequência do filme Alô, amigos (1942), apresenta ao Pato Donald as belezas e delícias do Rio de Janeiro e da Bahia, com direito a uma dose de cachaça da boa, samba e uma percussão inconfundível, feita com caixinhas de fósforo e com os soluços do convidado ilustre e embriagado.
Com o Pato Donald em 'Saludos Amigos' | <i>Crédito: Reprodução
Zé Carioca e Pato Donald, em cena do filme Alô amigos.
Imagem disponível em: http://goo.gl/MRVS1T
Parte IV
A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dadas a sua generalidade e persistência. […]. Não é falso dizer que, sob este aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CANDIDO, 1989, p. 142)
No trecho acima, o autor aponta o Regionalismo de 1930 como o grande divisor de águas, no que se refere às questões que envolvem literatura, cultura e identidade. De modo especial, e baseando-se nesse aspecto “revelador”, que privilegiava a denúncia e a “desalienação”, as obras regionalistas privilegiavam a representação de um Brasil totalmente avesso ao mito do paraíso terrestre. Assim é o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, razão pela qual o comparei aos ideais do Cinema Novo, estética que deu continuidade à literatura regionalista. Aliás, no que se refere a isso, o filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, é exemplar, pois adapta uma obra literária que se encaixa perfeitamente na descrição de Candido, tal como apresentada no excerto anterior, e porque cinematograficamente a história elege uma estética que prioriza o conteúdo da miséria, dos abusos de poder e da submissão para fins de sobrevivência.
A inteligência tomou finalmente consciência da presença das massas como elemento construtivo da sociedade; isto, não apenas pelo desenvolvimento de sugestões de ordem sociológica, folclórica, literária, mas, sobretudo, porque as novas condições da vida política e econômica pressupunham cada vez mais o advento das camadas populares. (CANDIDO, 2000, p. 134-5)
Nessa citação, o autor menciona a importância do que chamou de “pitoresco exótico”. Sem a preocupação com o país novo, a qual norteava o Romantismo, os autores da segunda fase do Modernismo decidiram olhar mais para dentro do que para fora. Sob esse ponto de vista, o regionalismo não serve apenas de pano de fundo às ações. Mais do que isso: ambiente e personagens são interdependentes. Em Vidas secas, o exemplo fica por conta da combinação perfeita entre a família de Fabiano e a aridez da paisagem. Além disso, enfatize-se a democratização da literatura, preocupação política e artística que se tornou evidente desde a Semana de 1922 (com o poema Os sapos) e, depois, em alguns dos poemas brevíssimos de Oswald de Andrade, por exemplo.
O capoeira
– Qué apanhá sordado?
– O quê?
– Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada. (ANDRADE, 2017)
Vício da fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados. (ANDRADE, 2017)
Parte V
[…] somos parte de uma cultura mais ampla, da qual participamos como variedade cultural. […] é uma ilusão falar em supressão de contatos e influências. Mesmo porque, num momento em que a lei do mundo é a inter-relação e a interação, as utopias da originalidade isolacionista não subsistem mais no sentido de atitude patriótica, […]. (CANDIDO, 1989, p. 154)
Baseando-se nesse outro fragmento de Candido, surge, ainda, a questão do hibridismo, assunto que voltou a ser debatido neste século, por influência da globalização. Para fins de comparação com a passagem acima, observem-se as considerações de Stuart Hall, autor que também associa a diferença à diversidade:
[…] existem também fortes tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o “fechamento” e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade. […].
Esses novos aspirantes ao status de “nação” tentam construir estados que sejam unificados tanto em termos étnicos quanto religiosos, e criar entidades políticas em torno de identidades culturais homogêneas. O problema é que elas contêm, dentro de suas “fronteiras”, minorias que se identificam com culturas diferentes. (HALL, 2001, p. 52, grifo no original)
Para exemplificar o hibridismo na literatura, escolhi O mez da grippe, de Valêncio Xavier, texto que celebra a multiplicidade das línguas, das mídias e das artes, inclusive relativizando a fronteira entre realidade e ficção:

Antonio Candido: Fragmentos de uma releitura 2
Trecho da novela O mez da grippe (XAVIER, 2002, p. 29)

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Na página reproduzida anteriormente, o autor utilizou fotografia, anúncio classificado, orientações da Secretaria de Saúde, desenho/retrato e trechos de depoimentos das pessoas que vivenciaram a epidemia da gripe. Essa mescla representa o valor do hibridismo na literatura, que passa a incorporar outras linguagens e, nesse processo, amplia seus horizontes e seu território, testando novos recursos e ferramentas.
           
Parte VI

Em Os parceiros do Rio Bonito, Antonio Candido refere-se aos alimentos responsáveis pela variação, no cardápio habitual do caipira, mencionando que esses “constituem elemento importante nas representações mentais do caipira, sendo sem dúvida um dos fenômenos recalcados de inquietação. […] as ‘misturas’ prediletas são o pão de trigo e a carne de vaca, ambos de raro consumo” (CANDIDO, 2001, p. 170, grifo no original).
Nesse sentido, associei as afirmações do crítico ao filme Marvada carne, que revisita e remodela a representação do caipira (não só no cinema, mas também na literatura, pois toma como base o personagem Jeca Tatu). No longa da década de 1980, dirigido por André Klotzel, Quim, o protagonista, parte em busca de comer carne de boi, desejo que metaforiza sua inquietação e sua luta pelo progresso.
  
Parte VII
Para encerrar esta minha breve revisita aos meus escritos e à obra fundamental de Antonio Candido, escolho o meu silêncio e algumas palavras contundentes do crítico, que resumem e coroam seu precioso legado:
Primeiro verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (CANDIDO, 2011, p. 188)
REFERÊNCIAS
ALÔ, amigos. Direção de Norman Ferguson, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Hamilton Luske e Bill Roberts. EUA: Walt Disney; Walt Disney Pictures, 1942. 1 dvd (42 min); son.
ANDRADE, O. de. O capoeira. Disponível em: <https://pensador.uol.com.br>. Acesso em: 19 mai. 2017.
_____. Vício da fala. Disponível em: <https://pensador.uol.com.br>. Acesso em: 19 mai. 2017.
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
_____. Dialética da malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1970.
_____. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
_____. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades / 34, 2001.
_____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. A literatura e a formação do homem. Disponível em:  <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/view/3560/3007>. Acesso em: 19 mai. 2017.
_____. O direito à literatura. In: _____. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 171-193.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
XAVIER, V. O mez da grippe. In: _____.  O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 7-80.
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Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: [email protected]

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