Travaillons donc à bien penser. Voilá le principe de la morale.
Theodore Dalrymple, pseudônimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels, é um daqueles amargos e certeiros autores de crítica social que aparecem de tempos em tempos, e que suscitam sentimentos extremos: não é possível gostar ou não gostar dele. Ou se ama, ou se odeia.
Dalrymple, em seus escritos, guia o leitor nos emaranhados das próprias reflexões acerca de vários aspectos da sociedade contemporânea, mais especificamente da europeia. Boa parte de suas obras é composta por artigos escritos em anos diferentes, sobre tópicos diferentes, geralmente sobre as experiências profissionais que o autor teve trabalhando em presídios. “Podres de Mimados”, porém, é um ponto um tanto fora da curva. Nessa obra, o crítico escolhe um tema em específico, o sentimentalismo, e sob esse tópico tece críticas, sempre fazendo uso de suas experiências e ponderações.
Utilizando uma expressão que Dalrymple usa diversas vezes no livro, o sentimentalismo tóxico é o principal fator no ciclo vicioso dos desastres sociais peculiares que assola a sociedade desde o indivíduo até o coletivo. Tal sentimentalismo é, ao mesmo tempo, um responsável e uma consequência de si mesmo, e também dos problemas que o autor aborda: Famílias destruídas; padrastos abusivos; mães complacentes com o abuso; jovens que se aventuram em experiências sexuais inconsequentes; famílias que vivem há sete gerações como dependentes do brutal sistema de assistencialismo estatal britânico; jovens que usam da violência para satisfazer seus caprichos – são alguns dos temas e exemplos explorados pelo autor.
Mas, afinal, o que é esse sentimentalismo tóxico que Theodore Dalrymple usa para explicar tantas mazelas? Nas palavras do autor:
“O sentimentalismo é uma daquelas qualidades mais fáceis de reconhecer do que de definir. Os dicionários, como não surpreende, apontam todos para as mesmas características definidoras: um excesso de emoção falsa, doentia, e sobrevalorizada em comparação com a razão.”
Não só isso, mas sentimentalismo, como tratado em “Podres de Mimados”, também tem aquela conotação romântica tradicional do poeta que sente tudo à flor da pele, como oposição ao brutamontes filisteu. Sendo assim, qual a parte tóxica de tais sentimentalismos? Para Dalrymple, tais emoções tornam-se indesejáveis e até mesmo perigosas quando são expostas em público sem pudor ou medida.
“Não mais basta derramar uma lágrima em particular, longe da vista alheia (…); é necessário fazê-lo, ou seu equivalente moderno, à plena visão do público.”
O sentimentalismo tóxico é a preocupação forçada e desacompanhada do conhecimento, a exposição de emoções que outrora foram nobres. É o filtro na foto do perfil do Facebook “Je suis Charlie”, “Pray for Syria”, “Pray for London” e todas as mensagens de pêsames que acompanham os famosos textões com críticas à violência, à desigualdade social, ao imperialismo capitalista norte americano, ao muro (até o momento inexistente) de Donald Trump, ao uso de armas de fogo, e recentemente contra o uso de facas. Sentimentalismo tóxico é a visão de mundo que o economista Thomas Sowell chama de irrestrita: a ideia de que há uma solução para todos os problemas do mundo e é nosso dever alcançá-la, independente dos meios usados e das consequências de ideias e ações que talvez ignorem completamente o conhecimento de causa, a ponderação, a reflexão, e sobre tudo o raciocínio.
Para Dalrymple, o sentimentalismo tóxico é uma cadela que está constantemente prenhe e constantemente parindo ninhadas diabólicas. A nova moda de cultuar e perpetuar o status de vítima é um de seus filhos. Não é suficiente olhar com compaixão alguém que sofre econômica, social ou psicologicamente. O oprimido tem de ser tratado como um cristo hipermoral e imaculado, sobre quem toda opressão, toda barbárie, toda injustiça foram colocadas, e por isso todos os seus opressores (ou seja, todas as pessoas que são de etnia, gênero e condições econômicas opostas) têm o dever moral, ético e político de ajoelhar-se e adorar aquele a quem fizeram mal, mesmo se não o conhecerem.
O sentimentalismo tóxico também gosta de ignorar o estado permanentemente caótico que são o mundo e as relações humanas em essência. Não interessa se homens são a grande maioria da população carcerária, a grande maioria de vítimas de homicídio, suicídio, roubo, violência, a grande maioria que trabalha em ambientes insalubres e que sofrem de transtornos como síndrome pós-traumática, depressão, ansiedade e estresse. O Homem, esse coletivo transcendental que mais parece um conceito do mundo das ideias do que um ser tangível, é o responsável por todos os sofrimentos da mulher. Esta, obviamente, se por acaso comete algum ato reprovável, fê-lo em consequência de seu permanente estado de opressão. É a Eva que comeu a maçã por ser inocente (fraca?) demais para resistir à serpente.
E qual a origem do sentimentalismo tóxico?
A resposta para essa pergunta talvez seja mais complicada e controversa do que a própria definição de sentimentalismo tóxico.
Para Dalrymple, toda civilização chega a um nível de prosperidade econômica tão grande que acaba sucumbindo moralmente. Como assim?
Em “Memórias do Subsolo”, Dostoievski aponta para a eterna insatisfação humana. Somos, segundo ele, não apenas ingratos, mas insatisfeitos a ponto de sermos capazes de voluntariamente trocar uma vida sem preocupações por uma condição de miséria, porque a falta de preocupações fundamentais nos leva à loucura.
É essa a explicação que Dalrymple nos apresenta. Civilizações já sucumbiram sob a decadência moral que é efeito natural da prosperidade econômica, e a civilização ocidental, para o escritor, está seguindo o mesmo caminho. Nunca houve uma produção de riqueza tão grande quanto vemos hoje. Obviamente existem pessoas que vivem em situação de miséria, que ganham não mais que dois dólares por oito horas de trabalho. Mas essas mesmas pessoas estão em maior vantagem do que os camponeses medievais. A classe média de países emergentes desfruta de mais confortos do que monarcas de 500 anos atrás. Os antibióticos e a prática de higienização diária pouparam tantas vidas que no século 18 houve um boom sem precedentes na população mundial e na qualidade de vida. E, mesmo assim, o século 20 ficará marcado na história como o século dos massacres.
Assim, para Dalrymple, é tola a ideia de que a prosperidade econômica nos leve mais próximo ao paraíso. É perigosamente ingênua a crença de que há algum modelo político-econômico-moral que nos leve à paz sem par num retorno ao Éden. Muito pelo contrário, como já elucidado: para o autor, essa crença ideológica que pretende produzir salvadores da pátria é exatamente o que conduz as civilizações a desastres humanitários como o socialismo e o nazismo.
E para um autor tão pessimista, há alguma solução?
Não. O que há são remediações para amenizar as inevitáveis consequências da imoralidade humana presente em cada indivíduo.
Theodore Dalrymple fecha uma obra pesada, polêmica e pouco delicada citando o matemático e filósofo francês Blaise Pascal:
Trabalhemos duro para pensar. Eis o princípio da moral.