Desnecessária felicidade

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O propósito da vida é a felicidade, certo? Pra uns, casar, ter filhos, ver a família crescer , morrer tendo conhecido os bisnetos. Pra outros, uma memória com coleções de lembranças sobre aventuras amorosas. Acho que é correto dizer que o que faz cada um feliz tem um grau considerável de variação. Alguns até diriam que o que traz felicidade é subjetivo.

A presente reflexão foi engatilhada por um texto do psiquiatra Anthony Daniels, mais conhecido na literatura como Theodore Dalrymple.

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Sua visão pessimista (nós pessimistas diríamos realista) do ser humano e tudo o que o cerca é bem conhecida – e admirada – principalmente nos círculos mais conservadores, isso porque, como conservadora, devo dizer que assistir aos amigos e conhecidos se afogarem numa esperança rasa e muito pouco racional em relação ao futuro da humanidade é não apenas triste, mas desesperador. Por isso, Dalrymple é um daqueles poucos refúgios modernos, como um bunker, onde podemos nos recolher para receber uma dose saudável de cinismo. – Antes que esqueça, o texto em questão se chama “Absolutamente relativo ou relativamente absoluto” e faz parte do livro “Qualquer coisa serve”, lançado pela editora ‘É Realizações’.

Em certa parte do artigo, Dalrymple cita uma peça de Federico García Lorca, chamada “Yerma”. Não tive a oportunidade de ler a peça, infelizmente, então todas as citações relacionadas a ela, aqui, serão no modo apud.

Yerma, que dá o nome à peça, é uma moça que contrai casamento arranjado com Juan. A moça, cujo grande sonho é ser mãe, porém, não é apaixonada pelo marido. Seu coração pertence a Victor, que a corresponde em seus sentimentos. Os dois, porém, apenas aceitam o que o destino lhes guardou. Nas palavras de Theodore Dalrymple:

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“Não obstante a protagonista [Yerma] se sinta atraída – mesmo antes do casamento – por um homem chamado Victor, ela aceita que é questão de honra para a família não sucumbir à tentação. Victor também o aceita, e sabemos que, com isso, a única esperança de felicidade para Yerma se perde. No entanto, ambos têm em mente que há, na vida, objetivos maiores que a felicidade, que o destino pessoal dos dois não é a finalidade última de suas vidas.”

Não é estranho se perguntar o como Yerma vive em paz sem ter o desejo de seu coração – e um desejo tão poderoso como aquele movido pela paixão – atendido. Como, afinal, ela faz isso? Deitar a cabeça no travesseiro, ao lado do marido, mas com a atenção em outro homem, a conseguir lidar com tal frustração. É tão doloroso, afinal, para nós da era do “corra atrás de seus sonhos” sequer cogitar não fazer o que estiver ao nosso alcance para realizarmos uma vontade. O propósito da vida, afinal, não é a felicidade?

A resposta pra essa pergunta varia de acordo com a cosmovisão de cada um, mas no geral, faz parte da nossa confissão de fé pós-moderna a crença de que “Deus quer que eu seja feliz”. Porque é natural a crença de que o único limite para a procura da felicidade é o outro. Se não fere o meu próximo ou algo que pertença a ele, a minha procura é não só genuína, mas obrigatória. Afinal, o que pensar de alguém que diz se recusar mergulhar nessa aventura existencial à procura daquilo que os preenche?

Mas o que parece não ocupar a cabeça das pessoas é o “e depois?”. E depois que eu me casar com a pessoa que amo e tiver os três filhos que sempre sonhei ter, o que vem? Existe algo depois da conquista daquele cargo pelo qual venho trabalhando há tantos anos? Ou daquela viagem para o país dos meus sonhos?

A verdade é que há um depois para todas as situações que julgamos ideais. Seu cônjuge acaba não sendo exatamente aquilo com o que você sonhou, seus filhos agora são adolescentes e levam a opinião dos amigos imaturos mais a sério do que a sua. O cargo pelo qual você lutou tanto é mais bem remunerado, e as dores de cabeça são proporcionais. O país ideal é exatamente como sua terra natal depois de um mês: um pedaço de terra povoado, com seus aspectos bons e outros nem tanto. A busca pela felicidade é, no final das contas, uma dose de LSD – o high é maravilhoso, mas o low tem o poder de sugar a sua alma.

Mas isso significa que o foco em aperfeiçoar a vida e a manutenção do conforto são inúteis? O mundo é a mente de Nietzche, onde nada tem um significado de fato? Algumas pessoas responderão que sim, mas ouvir a elas é tão tóxico quanto crer que a vida é um jogo de The Sims no qual seremos capazes de alcançar a felicidade permanente.

A minha resposta é muito parecida com a que uma velha religiosa daria. Seres humanos têm a natureza animal e imediatista, que precisa comer, beber e procriar. E tudo isso é muito bom desde que não sejam levados como o fim último da nossa existência. Muito além disso, há aquele lugar em nosso ser que precisa de algo que jamais acaba, que é um saco sem fundo e traga tudo o que vê pela frente, sem jamais poder ser satisfeita por nada que é finito. Ao contrário do que alguns querem fazer parecer, para achar a resposta você não olha para dentro de si. Se somos famintos, logicamente não podemos satisfazer a nós mesmos. A resposta sempre está lá fora, como Dostoiévski disse:

“Havendo amor, pode-se viver, mesmo sem felicidade.”

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