Cartas de Kafka a Milena, a desordem das almas e o comércio com os fantasmas

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“O amor, para mim, é assim: tu és uma faca que eu pego, espeto em mim e me estraçalho todo.”
Franz Kafka, Cartas a Milena

O livro habitualmente editado com o título “Cartas a Milena” (Briefe an Milena) é apenas um conjunto escolhido de algumas cartas de Franz Kafka para Milena Jesenská escritas entre os anos 1920 e 1923. Originalmente foi editado por Willy Haas que aparece mencionado diversas vezes. Haas também sofre da “maldição de Kafka”: todos os que lhe eram próximos, fizeram-lhe bem e mal – normalmente o “bem” é a divulgação e preservação da Obra de Kafka para a história e habitualmente o “mal” é aplicarem às suas escolhas as suas chaves interpretativas pessoais com as concomitantes limitações literárias e estéticas. Haas não quis ferir suscetibilidades e foi elidindo referências a pessoas que estavam vivas: a diplomacia é das maiores inimigas da arte!!

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Só em 1986 foram publicadas as cartas “completas” de Kafka e é habitual juntar-lhe umas cartas de Milena e até alguns ensaios seus.

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No momento da correspondência Kafka tem cerca de 30 anos e tinha publicado pequenos textos em forma de conto ganhando, com isso, alguma notoriedade. Milena tinha traduzido alguns dos contos para checo e uma parte da correspondência trata justamente da melhor forma de traduzir certos termos. Destes cerca de quatro anos de troca de cartas, Milena e Kafka têm uma relação amorosa que dura, grosso modo, um ano.

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A correspondência traduz uma relação à distância anterior à invenção do Skype, por certas respostas, percebe-se que Milena sente a ansiedade de estar com Kafka e este, por seu lado, é todo ele ansiedade, medo e dramatismo, estes sentimentos traduzem-se na descrição de sonhos onde sempre aparece a imagética das portas e obstáculos e em abundantes metáforas de muros, barreiras, portas, etc.

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As cartas estão preenchidas pela ansiedade da luta dos dois para vencer os obstáculos: a distância, um em Praga e o outro em Viena, o casamento de Milena e as diversas fragilidades de Kafka: doença, medos, incapacidades físicas. Kafka na sua habitual orgia de desespero! A ansiedade e medo de nunca conseguir ver Milena traduz-se em frases luminosas e lapidares como “Pertences-me, mesmo que eu nunca te venha a ver” (Du gehörst zu mir, selbst wenn ich Dich nie mehr sehen würde).

Kafka visita Viena por volta de julho de 1920 e a relação pessoal entre os dois conhece o seu acme. Kafka, uma vez mais, descreve este encontro de forma brilhante “O primeiro dia foi o dia da incerteza, o segundo dia o dia da grande certeza, o terceiro o do arrependimento e o quarto dia foi o dia bom”.

Perto do fim do ano reencontram-se em Gmünd na fronteira da Áustria e o resultado é amorosamente desastroso, eram “como dois estranhos”, segundo Kafka. Conseguem, apesar das diferenças, reabilitar uma relação amistosa que aparece ainda na correspondência.

De alguma forma, a correspondência foi inimiga da relação física: a intensidade das projeções e dos sentimentos à distância só podia redundar numa deceção ao vivo – muito à semelhança do mundo moderno em que o exagero de comunicação e profusão de imagens (artificiais) geram um mundo irreal a que ninguém consegue corresponder, nem nós mesmos correspondemos à nossa imagem virtual.

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“A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo, do ponto de vista puramente teórico, uma terrível desordem das almas: é um comércio com fantasmas, não apenas os do destinatário, mas também os próprios”

(Die leichte Möglichkeit des Briefeschreibens muß – bloß teoretisch angesehn – eine schreckliche Zerrüttung der Seelen in die Welt gebracht haben. Es ist ja ein Verkehr mit Gespenstern und zwar nicht nur mit dem Gespenst des Adressaten, sondern auch mit dem eigenen Gespenst, das sich einem unter der Hand in dem Brief, den man schreibt, entwickelt […])

Os personagens das obras de Kafka são sempre uma grande desilusão familiar e o autor parece corresponder-lhes sendo ele mesmo uma grande desilusão amorosa – ele mesmo confessa nas cartas ter estado três vezes noivo, duas das vezes da mesma pessoa, mas nunca se ter casado.

À semelhança de Kafka, Milena também é atormentada pelo impulso de destruir a sua criação, muito do que se apresenta pelo mundo fora não passa de más deduções das respostas de Milena, uma vez que, quando Kafka morreu, pediu que as cartas dirigidas por si a Franz Kafka fossem destruídas integralmente. Normalmente, deduz-se que Milena estava tão envolvida na relação como o próprio Kafka, tese romântica muito ao gosto do grande público, mas que levanta interrogações. Milena é uma mulher prática, centrada na ação e muito lúcida acerca do casamento e de outras instituições sociais, num ponto, chega a chamar os artistas de “criaturas grotescas”, tem, por isso, uma natural atração e curiosidade pelo universo e forma de estar no mundo dos artistas, mas está longe de ver a sua vida comprometida de forma séria com um homem com o perfil e sensibilidade de Kafka. Aproximou-se do escritor por curiosidade e algum interesse de promoção pessoal como tradutora, manteve-o a uma distância confortável e segura, num flerte controlado, o que não a impede de ter tido algum entusiasmo pela experiência amorosa com uma pessoa tão incomum e talentosa.

Milena sobrevive muitos anos a Kafka, vai casar-se e recasar-se e tornar-se uma ativista política e jornalista interventiva.

Milena junta-se à resistência após a ocupação da antiga Checoslováquia. Ajudou muita gente a fugir do país, mas ela própria decidiu ficar para ajudar os outros. Queria ajudar a qualquer preço pessoal. É presa pela Gestapo em 1939 e enviada para o Campo de concentração feminino de Ravensbrück onde vai ter um papel decisivo: é infinita a sua capacidade de ajudar toda a gente naquele ambiente de terror.

Mesmo naquele cenário dantesco, mantém uma capacidade de humor desumana que leva as prisioneiras a apelidá-la de “água de colónia”. Como todas as prisioneiras foi tatuada com um número, no caso dela o 4714 que, em alemão, soava ao nome de uma famosa água de colónia de grande qualidade muito em voga na época.

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Campo de Concentração feminino de Ravensbruck

Um dos grandes paradoxos do mundo moderno é a eletrónica e redes sociais, criadas para permitir o contato entre humanos, ter sido uma fonte de isolamento, é por isso mesmo que a obra de Kafka em geral e a epistolografia em particular são tão atuais: nelas está plasmada a palete de sensações e sentimentos humanos face ao isolamento, solidão e perda de contato humano. Há em Kafka um prenúncio da incapacidade amorosa dos tempos modernos… ele deseja ardentemente Milena, mas faz sempre uma negociação com os seus medos pessoais, a sua agenda particular e o conforto pessoal. Prefere o entusiasmo de amar e escrever cartas, a concretizar a relação. O ser humano está, cada vez mais, amorosa e socialmente, distante do outro, mergulhando, assim, num perigoso ensimesmamento kafkaniano de consequências graves. Este Processo não é de Kafka, é de nós todos.

Os piores pesadelos de Kafka, como sempre, realizaram-se: o casamento de Milena, grande óbice à relação dos dois, terminou, mas, como quase sempre na vida, Milena acabou casada com outro homem.

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3 thoughts on “Cartas de Kafka a Milena, a desordem das almas e o comércio com os fantasmas

    1. Não tinha ideia que a loção existia. Estou abismado!!

      Muito mais sobre a Milena… num próximo capítulo, mas vamos falar de campos de concentração, assunto indigesto!

      Obrigado

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