FANFIC: Tecnologia digital, literatura e autoria

Em plena era cibernética, os processos de leitura e de interpretação são bastante específicos e exigem um perfil diferenciado de receptor. Do mesmo modo, o uso diário do computador e do smartphone democratizam o acesso à informação, às artes e reconfiguram as atividades da crítica e da autoria. A autonomia é característica determinante e relaciona-se fortemente ao aspecto criativo. Emprestando a nomenclatura da Estética da Recepção, e pensando no início do advento das redes sociais, neste século, o leitor passa de receptor a coautor, sobretudo quando é possível que ele manipule o texto, interagindo com hyperlinks que oferecem percursos diferentes, além da oportunidade de expandir ou não o texto. Entretanto, em um segundo momento, a coautoria eleva-se à autoria, já que o ciberespaço também é um convite à criação. Nas palavras de Umberto Eco, “o processo retórico (que em certos casos se assimila ao estético) torna-se uma forma autorizada de conhecimento, ou pelo menos um modo de pôr em crise o conhecimento adquirido” (ECO, 1980, p. 240).

Atualmente, a literatura ganha um espaço novo, virtual, que pode ser independente da página impressa ou paralelo a ela. Tânia Porto menciona que “a invasão das mídias e o emprego das tecnologias na vida cotidiana modelam progressivamente um outro comportamento intelectual […]” (PORTO, 2016, p. 3), de modo a reconfigurar os perfis de autor, leitor e até mesmo o formato dos textos. Há décadas, McLuhan também destacava essa associação entre tecnologia e comportamento humano: “Qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão ou autoamputação de nosso corpo, e essa extensão exige novas relações […]” (MCLUHAN, 1969, p. 63).

Sem dúvida, essa mudança pode ser exemplificada com a crescente publicação de resenhas e textos literários, por críticos e autores “não profissionais”, em sites e blogs que privilegiam tanto a escrita quanto o formato videográfico. Conforme Tânia Porto, essa autonomia é decorrência da tecnologia e da comunicação global que é motivada por ela: “Uma relação interativa com os meios permite ao usuário assumir o papel de sujeito” (PORTO, 2016, p. 4).

Considerando a transição de coautoria para autoria, é possível constatar o papel da Internet nesse processo evolutivo, principalmente em se tratando da utilização de hipertextos:

O poder de recriar e operacionalizar simultâneas conexões sem ordem preestabelecida gera a emancipação do leitor, que trilha os próprios caminhos e sente-se mais instigado a aprender e interpretar os assuntos uma vez que pode utilizar não só a leitura, mas diversas outras mídias que auxiliam e facilitam esse processo. (MATOS; SILVA, 2008, p. 213)

Além disso, a produção foi um ensejo natural, depois de os internautas terem acesso garantido a materiais e instrumentos diversos, tais como: séries (literárias e televisivas), que permitiam ao público definir o ritmo e a quantidade de leitura ou visualização a cada acesso; processadores de textos, que permitem a formação quase aleatória de poemas, com base em palavras previamente selecionadas; sites e blogs de produção crítico-literária (individual ou coletiva).

Em texto publicado na revista Helena, Fernando Ceylão registra essa recente transformação cultural experimentada por nossa sociedade: “Hoje, somos todos documentaristas de nós mesmos; fotógrafos, articulistas, personagens de reality shows e humoristas” (CEYLÃO, 2019). De fato, a cada ano que passa, aumenta o número de sites que publicam cibertextos (de autores especializados ou amadores). As páginas são criadas e mantidas tanto por autores individuais quanto por pequenos grupos de escritores ou aspirantes à literatura. Nesse panorama, destaca-se a fanfic (termo que pode ser traduzido literalmente como “ficção de fã”), herdeira dos famosos fanzines da década de 1970. Evidentemente, o processo todo da fanfic parte da leitura, mas resulta na escrita de textos, preferencialmente no formato de conto. Isso significa que o leitor vira autor, estreitando os laços com o escritor da obra original e com a obra em si. Outro dado fundamental é que as fanfics atendem à demanda do que é considerado politicamente correto hoje em dia e abrangem inúmeras discussões acerca da sexualidade, dos conceitos e dos direitos inerentes à questão dos gêneros, bem como do caráter relacional que os envolve.

Até agora, existem mais de 50 tipos de fanfic. Entre eles, destaco apenas alguns: shortfic, what if, crossover, saga, self intersection, maintext, subtext, universo alternativo, etc. Enquanto a shortfic reduz o tamanho da obra-base (quase sempre um romance), sem desobedecer às suas características principais, a saga privilegia a expansão, sobretudo no que diz respeito aos temas que caracterizam esse gênero textual. Em outra vertente, o crossover associa-se aos conceitos de intertexto, intratextualidade e até mesmo de intermídia e interartes, ao estabelecer relações, entre temas, personagens ou estilos de duas ou mais obras. Tendendo mais para o gênero fantástico ou para a simples imaginação como gatilho textual, os formatos classificados como what if e universo alternativo propõem outra lógica e, consequentemente, alteram causa e efeito, desviando a narrativa de seu curso normal. Inclusive, nessa tipologia, até mesmo viagens no tempo são perfeitamente possíveis. Por fim, nas categorias de self intersection, maintext e subtext, o critério é essencialmente narrativo, porque apresentam, respectivamente: o autor da fanfic como personagem; os principais personagens e situações da história recriados na fanfic; e a ênfase aos elementos secundários da obra-base, tanto no que diz respeito ao enredo como no que se refere aos personagens (ou seja: no subtext, o que é periférico na obra original torna-se primordial na ficção de fã).

Existem muitos sites que divulgam as fanfics. Um deles é o Spirit (https://www.spiritfanfiction.com). Na página, as histórias são divididas em: “Mais Recentes”, “Mais Populares” e “Mais Comentadas” (SPIRIT, 2019). Qualquer que seja a opção, o site oferece mais de seiscentas telas com resultados, sendo que, em cada tela exibe oito produções distintas. Dessa forma, em uma conta rápida e arredondando os valores para baixo, são quase 5 mil histórias, muitas delas no formato de coletâneas, bastante vastas.

Vejamos um exemplo de fanfic, disponibilizado no Spirit e baseado na série televisiva Supernatural:

FANFIC: Tecnologia digital, literatura e autoria
Figura 1: Fanfic Supernatural – Réquiem (SPIRIT, 2019)

Os dados capturados na tela do site revelam vários detalhes da produção, que inclui uma parte literária, porque envolve a escrita de um roteiro. Trata-se de uma obra vasta, com 54 capítulos, já concluída (e revisada recentemente). Além disso, a ficha técnica resumida é acompanhada do link de acesso à sinopse completa e das informações relativas à recepção da fanfic, que recebeu 996 comentários e 1.545 likes. Os altos índices são resultantes da ampla divulgação on-line, do acesso gratuitoe do fato de a obra usar como ponto de partida uma série de sucesso comprovado há mais de uma década, no mundo todo.

Conforme Maria Lúcia Vargas, as fanfics problematizam e discutem a “relação entre as produções caseiras e a indústria de entretenimento” (VARGAS, 2005, p. 53). Além disso, a autora afirma que esse tipo específico de literatura sinaliza a preferência do público, ao mesmo tempo em que demonstra que os novos autores (antes, apenas fãs) reivindicam o direito de utilizar os produtos da indústria de entretenimento “como inspiração para a realização de suas intenções sociais, especulações intelectivas e, naturalmente, produções culturais, geralmente sem fins lucrativos” (VARGAS, 2005, p. 53). Transitando por uma via de mão dupla, os autores de fanfics desempenham as funções de consumidores e produtores. Esses novos autores são os chamados prosumers, conceito resultante do neologismo que funde producer (produtor) e consumer (consumidor). O termo em inglês foi criado porAlvin Toffler, mas em português já é utilizada a forma prossumidor.

Em tom profético, Francis Ford Coppola, no documentário Hearts of darkness, afirma: “O cinema só será uma espécie de arte quando uma dona de casa puder fazer o seu próprio filme”. Fernando Ceylão relembra esse fato, no ensaio que publicou na revista Helena, e constata o inevitável: “Chegamos a essa era. E as donas de casa são os milhares de jovens que satirizam suas vidas diante de câmeras de baixo custo e alta resolução” (CEYLÃO, 2019). Apesar de, nas duas citações deste parágrafo, o tema ser a sétima arte, é necessário combinarmos nossa realidade (de escritores e críticos no universo on-line e da refuncionalização do telefone, que, hoje, serve para fotografar, filmar, comprar, fazer transações bancárias e também para fazer ligações – de voz ou de vídeo) com a previsão de Coppola e com este diagnóstico, de Chartier: “Os autores não escrevem livros; não, eles escrevem textos que se tornam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados” (CHARTIER, 1999, p. 17). Com certeza, no tempo limítrofe em que Roger Chartier publicou essa informação, considerava-se apenas a mudança no status do texto, graças aos recursos tecnológicos que permitiam o escaneamento, a produção, a reprodução e a manipulação ou o aprimoramento da obra literária. Entretanto, vinte anos depois, podemos afirmar que, além de a tecnologia digital ter possibilitado a reconfiguração na produção e na leitura dos textos literários, revisando as funções do autor e do leitor, experimentamos, hoje, uma substancial inversão de papéis: autores nunca deixaram de ser leitores, mas leitores passaram a ser autores. A Internet garante democratização e divulgação, mas requer atualização constante, com fanfics sempre atreladas aos sucessos do momento. Nesse aspecto, a ficção de fã é notadamente marcada pela efemeridade. Portanto, parafraseando Titãs, na lista de textos mais acessados sempre é possível encontrar “a melhor fanfic de todos os tempos da última semana”.

REFERÊNCIAS
CEYLÃO, F. Piada em debate. Disponível em: <http://www.helena.pr.gov.br/2017/09/11/Piada-em-debate.html>. Acesso em: 9 jun. 2019.
CHARTIER, R. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 1999.
ECO, U. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980.
MATOS, M. R.; SILVA, D. C. S. e. Poesia e hipertexto em Arnaldo Antunes:  Reinventando a página poética. Ícone, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 211-227, jul. 2008.
MCLUHAN, M. Os meios de comunicação com extensões do homem.  São Paulo: Cultrix, 1969.
PORTO, T. M. E. As tecnologias de comunicação e informação na escola. Relações possíveis… Relações construídas. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/rbedu/v11n31/a05v11n31.pdf>. Acesso em: 24 set. 2016.
SPIRIT. Spirit fanfics. Disponível em: <https://www.spiritfanfiction.com>. Acesso em: 9 jun. 2019.
VARGAS, M. L. B. O fenômeno fanfiction: Novas leituas e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005.

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