Postal 3, O Romance das Origens e Origens do Romance
Marthe Robert é uma das primeiras grandes responsáveis pela receção de Kafka em França: são dela as primeiras traduções de grande qualidade e é autora de diversos livros sobre Kafka de grande referência. A leitura que faz da obra kafkaniana obedece aos princípios gerais sobre o Romance que estão plasmados na sua obra O Romance das Origens e Origens do Romance (Roman des origines, origine du roman).
Os seus ensaios sobre o Romance, como era normal na época, utilizam muito do vocabulário da psicanálise.A sua tese é simples: o romance é o género literário onde se plasma de forma clara aquilo a que Freud chamava o “romance familiar dos neuróticos”. O romance familiar dos neuróticos, para Marthe Robert é a resolução fantasmática da criança do problema da ansiedade perante a descoberta da sua individuação e concomitante tensão edipiana. Há, assim, duas resoluções: uma é a fantasia de achar que nasceu numa família real, uma família predestinada e, portanto, ele, o infante, é um messias, um príncipe; a outra é a do “bastardo”, ele não pode ser filho daquele pai, relega-o para um mundo de fantasia, aprisionando-o, tirando-lhe poder colocando-o numa masmorra quimérica.
Todo o romance é sempre uma variação destas duas resoluções.
A narrativa do romance familiar detém-se sempre à porta do quarto dos pais, perante a cama onde foi fantasmaticamente gerado e onde há uma linha divisória imaginária: de um lado, os velhos, os malvados e poderosos e do outro, os oprimidos, fracos e jovens.
Os dois modelos encarnam no Dom Quixote e no Robinson Crusoe.
Dom Quixote é o príncipe, perante a angústia do mundo e da vida mergulha no mundo da fantasia, ele é um predestinado, um salvador, procura famílias de adoção fictícias na leitura dos Romances de Cavalaria e é ridicularizado pela “realidade” que Cervantes, paternalmente, lhe impõe corrigindo-o. Como qualquer menino mimado, acha que tudo lhe é devido e essa dívida resulta do seu desinteresse pelos bens materiais.
Cervantes é o pai, Don Quixote é o filho.
Robinson Crusoe toma outra opção: matar o pai! Rompe com a família e acaba numa ilha que representa o paraíso pré-edipiano e que ele vai ter que descobrir e dominar sozinho. Esse processo completa-se aos 26 anos com o aparecimento de Sexta-feira que toma o lugar do filho: resolução fantomática do complexo edipiano.
Estes romances nascem no contexto da burguesia, mas vão evoluir para o contexto napoleónico e da Revolução: o pai do povo, matou o rei (o pai) e inicia uma nova família de reis ao casar-se com uma herdeira do império, tornando assim possível o grande sonho dos bastardos: a ascensão social através das mulheres.
Balzac é um príncipe, quer ter um estatuto igual aos poderosos porque escreve a Comédia Humana quando ele próprio está nos antípodas dos seus personagens.
Flaubert é o todo poderoso, nega tudo: nega o romance como mero jogo narrativo, quer um romance formal e puro, nega o sexo, por isso o fiacre é todo negro e não se vê nada, nega mesmo o género sexual, quer restabelecer o paraíso hermafrodita, ele é homem, mas ele também é a Emma!
Para Marthe Robert, na senda de Proust e Joyce, só sobreviveu o formalismo e uns principezinhos como eu que vivem exclusivamente da vertigem narcísica da sua escrita.