Ano novo: colheita e destino

Adalberto De Queiroz

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Encare toda aquela coisa sobre janeiro: a cabeça velha voltada para trás, a nova, para a frente. Observamos o que se passou, projetamos algo novo – decisões de ano novo. Quão novo? Quão velho? Caberá ao leitor decidir como fazer o balanço do ano velho e projetar o novo.

Longe de meus livros e vivendo o “dolce far niente” dessas férias em Miami, fico meio sem chão para compor minhas croniquetas – algo que um colega deste espaço de publicações me ajudou a definir-se como “recolha literária” – isto é, “gênero” caído em desuso.

Ano novo: colheita e destino
Jano (Ianus), deus romano das portas, passagens, princípios, fechamentos e transições

O que consola é que este já teve seu apogeu, constituído, como é no meu caso, por textos de origem e formato diferentes, escritos em momentos e a propósito de acontecimentos e pessoas diversas, muitas vezes com inserção de fotografias, partituras, desenhos e outros adornos.

A minha tábua de salvação está nas bibliotecas, que aqui na Flórida são elogiáveis. Tenho um cartão de leitor, feito há muito tempo e que, mesmo com o endereço de uma velha pousada de tempos idos, é respeitado pelos bibliotecários, que me emprestam até três livros por visita.

Leio Robert Graves sem cansaço, mesmo lendo-o em inglês. Se o mitólogo daquela caixa dos “Mitos gregos” e historiador notável de “Eu, Claudius Imperador” já me havia conquistado, agora é hora de examinar o britânico como poeta. É o que me disponho a fazer nesses vinte e poucos dias em Miami. É claro que, por crenças diferentes, Graves jamais terá no coração deste leitor um escore maior do que o do romeno Mircea Eliade – são ambos admiráveis, com efeitos diferentes em meu espírito.

Então, nessa quadra do ano, em que temos a convocação da mídia e dos comerciantes (publicitários ainda mais!) para olhar para o ano novo com novos propósitos e celebrar o velho com uma espécie de balanço – quase sempre levando-nos a fazê-lo favorável aos nossos interesses; eis-me diante do deus Janus (Jano, o mecenas do mês de janeiro).

Santo Agostinho reinventou o mito, quando diz: “Jano tem poder sobre todos os começos (…)”; e ainda: “em poder de Jano estão os inícios”.

Ano novo: colheita e destino 1
A figura do mito latino para Agostinho está associada às portas de entrada e saída, às transições – passagens. É em sua face dupla que estão simbolizados o passado e o futuro, colheitas e dinheiro.

Mas por que pensar em Graves se a mitologia grega é seu foco (e não os mitos latinos) ? – pergunto-me.

“A mitologia grega, em seus primórdios, está interessada, sobretudo, nas relações inconstantes entre a rainha e seus amantes, que começam com seus sacrifícios anuais ou bianuais e terminam – na época em que a “Ilíada” era escrita e os reis se gabavam: “Nós somos muito melhores do que nossos pais!” – eclipsadas por uma irrestrita monarquia masculina.”

Eu fiquei pensando por essa ideia do matriarcado, talvez obcecado, a ponto de pensar que a resposta poderia apontar para a ideia de um contínuo matriarcado e que nada tem a ver com o feminismo.

Penso no matriarcado retratado em “A deusa branca”, livro em que Robert Graves nos recorda que “a Europa da Antiguidade não tinha deuses masculinos. A Grande Deusa era considerada imortal, imutável e onipotente, e o conceito de paternidade ainda não havia sido introduzido no pensamento religioso”.

Era o tempo em que o homem era o “sexo frágil” e eu não gostaria de levar o leitor a pensar sociológica ou mitologicamente nisso, mas pensar na minha (sua) própria relação com a passagem do ano – que me deixa tão sensível e dominado por Janus, a ponto de pensar que estou aos pés da Deusa Branca.

É bom que o leitor se ponha no meu lugar, quando olhando para o ano que se passou, reafirmei uma submissão ao matriarcado em que estou envolvido e, se alguma revolta havia, o novo me dispersa ao ler Robert Graves, pois afinal: “as mulheres possuem a chave do retorno de uma Era de Ouro. E esse será o momento em que o homem se reconhecerá mais uma vez como um ser espiritual e escapará de toda essa bobagem …”

Assim, concluo, pensado que há muito o que ser recolhido da face velha e muito a projetar na nova. Por meu turno, vou pensar bastante na face do jovem Jano que me incentiva a projetar coisas novas na vida e aqui nesta página de “recolhas literárias”.

Olhando pra frente, vamos avante, com o jovem 2020, abraçando agradecidos o velho 2019.

Que a colheita nos seja farta. Por meu turno, começo o ano traduzindo um poema de Robert Graves, através do qual espero manter o vínculo com você leitor(a) nessas recolhas que venho fazendo aqui no Recorte Lírico. Dedico, pois, às minhas seis leitoras – em especial à minha matriarca, esta tradução de “Bank Account” – poema de Graves (*):

CONTA BANCÁRIA
por Robert Graves*

Nunca mais me cobre isso:
Não há dívidas entre nós.
Apesar dos silêncios, meias promessas, evasões
Contenha meu espírito impaciente
E congele a moeda circulante do amor,
Isso não rebaixa nosso crédito. Por que devo exigir
Atestados autenticados de garantias,
E me esquecer de como você era quando abriu
Nossa conta conjunta no Banco do Destino?

++++++++++
(*) GRAVES, Robert. In: “Man Does, Woman Is”.

11 comentários em “Ano novo: colheita e destino”

  1. Bela “recolha”…mais uma vez sua crônica me encanta e ensina. Vamos nessa trilha conquistando o que houver de inusitado para arrepiar as antigas bases…

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  2. Maravilha de crônica, resultante da junção dos fragmentos de sua “recolha literária”, querido amigo e grande escritor, Adalberto de Queiroz! Vamos deixar com nosso velho 2019 o que tivemos de negativo e seguirmos juntos ao 2020, escrevendo nossa nova história, como gosto de dizer; movidos pelo desafio de viver e fazer todo sonho brilhar!

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  3. Croniqueta? Acredito que é normal, o grande fazer-se pequeno em sua simplicidade, pois quantos pequenos se fazem passar por grandes em suas arrogância ? Adalberto de Queiroz se supera constantemente em suas maravilhosas crônicas. Parabéns caro amigo.

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    • Obrigado, Marinho. Tomei a expressão de empréstimo ao grande português Ramalho Ortigão — parceiro de meu mais nobre antepassado, Eça de Queirós…

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  4. Meu ilustre amigo Adalberto, seu trabalho – que modestamente você chamou de croniqueta – é excelente para uma boa reflexão sobre o ano que passou e o que está iniciando. Já no início do texto, você exorta o leitor a decidir fazer um balanço do ano velho e projetar o ano novo.

    Particularmente, penso que os acontecimentos do ano que terminou servem apenas como embasamento e lições para os projetos do novo ano. Devemos relembrar os momentos felizes do passado e esquecermos aqueles que nos atormentaram. “Ano novo, vida nova”. E aqui eu me reporto ao que está escrito no livro do profeta Isaías:

    “Não vos lembreis mais dos acontecimentos de outrora, não recordeis mais as coisas antigas, porque eis que vou fazer obra nova, a qual já surge: não a vedes?” (Is 43, 18-19).

    Esses versículos servem de orientação na minha vida, inclusive me ajudam a resistir o mal que me atormenta ao longo da existência: a depressão. Quando começo a ficar triste e relembrar com abundância de coisas passadas, é sinal de alerta de que uma crise se aproxima, aí eu reajo, e busco força na religião, na fé e principalmente nesses trechos bíblicos.

    Meu ilustre escritor, percebi que a sua “recolha literária” é riquíssima, apesar de você declarar que estava longe dos seus livros, de suas “ferramentas”, o que é verdade. No bojo do seu trabalho você menciona Robert Graves, Santo Agostinho e faz referência a Juno e à mitologia grega.

    Não vou me aprofundar mais na sua “recolha” para não cometer equívocos e falar bobagens. Vou ficar na superficialidade para não naufragar na profundidade.

    Que o novo ano seja bom para todos nós e que a colheita seja farta. Parabéns grande escritor e poeta que merece a minha admiração e o meu respeito!

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