A difícil e inevitável escolha que todo artista, cedo ou tarde, precisa fazer

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Nunca esqueci o que meu pai me disse certa vez: o fardo de quem escolhe ser artista é morrer sozinho. Não tenho nada contra a solidão – contra morrer, talvez eu tenha – mas essa ideia povoou meu imaginário por algum tempo e, durante anos, me fez sentir uma espécie de remorso antecipado por acordar cedo e passar longas manhãs escrevendo literatura solitariamente, em vez de estar cumprimentando os vizinhos com um filho no colo ou uma dessas suburbanidades.  

Fiquei tentado a mudar de vida numa clínica médica. Não, eu não tive um câncer diagnosticado e dei uma guinada. Era só uma consulta de rotina. Estava sentado em uma sala de espera cheia, com a Sandra Annenberg apresentando o Jornal Hoje numa TV 32 polegadas muda, e muitos copos de café morno e excessivamente doce na lixeira. Foi quando senti um toque no meu braço.

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Eram os dedos grossos e ásperos de um velho que estava ao meu lado. “Você é evangélico?”, ele me perguntou. Meu primeiro pensamento foi imaginar que ele, sim, estava com um câncer terminal e talvez precisasse de uma oração. “Filho de evangélico, mas eu não sou”, respondi, referindo-se ao meu pai que, depois de décadas de poesia, tornou-se diácono numa igreja pentecostal. Pensei que minha resposta fosse frustrante, mas ele suspirou aliviado.

O velho abriu a bolsa que segurava com esmero e tirou um pequeno maço de papéis manuscritos. “É que evangélico não gosta muito do que vou te pedir”, ele disse, em seguida me entregou os papéis e completou: “São sambas. Quero que me diga se são bons”. Um pedido estranho. Mas concordei em ler as letras.

Eram composições interessantes. Falavam de paixões, conquistas e liberdade sob um ponto de vista singular. “Esses sambas são teus?”. Ele balançou a cabeça positivamente, sorrindo, e eu voltei a ler. Quando acabei a quinta composição, devolvi o maço e falei sinceramente. “Não preciso ler mais, tua música é boa, senhor.” Ele corrigiu a postura, inflando o peito com altivez.

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A porta de um dos consultórios se abriu e uma voz lá de dentro chamou um nome que não era meu, nem dele. Eu teria mais tempo para imergir em sua história. “Faz tempo que o senhor escreveu essas letras?”. Ele sorriu, como se pudesse reviver seus áureos anos. “A maioria na década de 80, garoto”. “Não deu certo, né?”, perguntei quase retoricamente. A voz dele atingiu um ar melancólico: “Deu não. Muitos parceiros alcançaram holofotes, vivendo noites em claro e colecionando sucessos. Mas eu… eu não consegui.”

Nesse momento, a voz do meu pai veio à tona na minha memória. “O fardo de quem escolhe ser artista é morrer sozinho”. O pior era que, além de sozinho, provavelmente doente e abandonado numa clínica popular em Mesquita, meu colega de espera era um compositor de sambas nunca ouvidos. A partir de sua imagem, vislumbrei tristemente meu futuro.

Como se lesse meus pensamentos e quisesse ratificar a tese do meu pai, o velho olhou para os dois lados, talvez se protegendo de ouvintes indiscretos, aproximou o rosto de mim e disse: “pra dar certo na arte, garoto, é preciso ter um pouco de desprezo pela família”. Olhou novamente ao redor antes de completar: “escolher a sua prioridade: a arte ou a família”. Eu já entendi, cara, o que você quer dizer é que ser artista implica uma dedicação que ninguém suporta, assim, se escolher o caminho da arte, esteja pronto para a solidão eterna, como o senhor, como eu – pensei.

Nesse mesmo instante, apareceu à nossa frente um rapaz de uns trinta anos, rodando uma chave de carro no dedo. “Cadê ela, pai?”. Não compreendi a fala. Só me dei conta de que “pai” era o meu companheiro de espera, quando o velho compositor apontou um dos consultórios. A porta, feito mágica, se abriu.

Do consultório, saiu uma senhora elegante, com um sorriso enorme. “O que o doutor disse, mãe?”, perguntou o rapaz de trinta anos. “Que está tudo bem, filho”. O rapaz a abraçou. Em seguida, o velho compositor levantou-se com alguma dificuldade e fez o mesmo. Ato contínuo, virou-se pra mim, fez uma espécie de continência e saiu.

Olhei pro lado e vi, na cadeira vazia, os cinco sambas que eu havia lido. “O senhor esqueceu suas composições”, gritei. O velho compositor voltou com os outros dois acompanhando-o. “Eu falei que precisamos escolher entre arte e família, não falei?”. Assenti com a cabeça. “Pois escolhi minha mulher e meu filho. O samba é nas horas vagas. Pode ficar com esses, garoto, depois faço novos”.

Meu primeiro pensamento foi um certo desespero, pois provavelmente estaria perto da hora de eu fazer a tal escolha. Mas, após a consulta (bem sucedida) e outro café (um pouco mais fresco), tive certeza de que o velho compositor não escolheu entre arte e família. Ele conciliou. O que é um sujeito que mostra suas criações para desconhecidos senão um artista? A questão é que ele não quis ser uma celebridade, mas um homem comum – essa sim sua verdadeira escolha. Esse fato ficou comprovado quando voltei a folhear as composições dele e não encontrei o nome. Os textos eram todos sem assinatura. O velho compositor era um criador anônimo, desses que não costumam morrer sozinhos.


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