O trauma do primeiro livro

Em 2017, eu me considerava um contista experiente. Já tinha: criado 1 blog literário havia 9 anos; passado os últimos 7 publicando crônicas em 2 portais com alguma relevância na minha região; publicado 1 caderno artesanal de contos; colaborado em ½ dúzia de fanzines; e me classificado em 3 ou 4 concursos literários. Embora eu não soubesse bem o que fazer com tantos números, tinha uma certeza: era hora de publicar meu primeiro livro.

Para completar, no meu computador havia um conto que eu julgava ótimo – sobre um fotógrafo decadente que registra um furacão no Rio. O problema era que, onde quer que eu lesse sobre escritores e publicações, as narrativas longas é que eram as prestigiadas, as realmente lidas. Então eu cometi o erro imperdoável a qualquer contista: estiquei o conto até que ele se transformasse num romance – tenho vívida essa imagem do texto sendo esgarçado, sangrando e sofrendo violentamente pelas minhas mãos.

Apesar da consciência posterior de tal falha narrativa, a noite de lançamento foi especialíssima: ocorreu na casa de cultura da minha cidade e lá estavam amigos, leitores, familiares que eu nem sabia que conheciam minha literatura, colegas de trabalho que já estão mortos e até gente desconhecida. Eu começava a extrapolar o ciclo dos que compram o livro pra agradar o autor. A obra, publicação independente, vendeu direitinho.

O trauma do primeiro livro

O problema foi um só: quando reli o pseudo-romance, detestei-o. Os capítulos eram curtos demais, a narrativa emulava uma mistura de Milan Kundera com Saramago – autores que eu devorara na época – somados a plots extremamente incoerentes, me fizeram ter uma espécie de constrangimento ao lembrar cada pessoa que levou a obra pra casa, tirou um domingo para lê-la e teve uma espécie de decepção: então o Jonatan diz que é escritor, mas é isso que ele escreve?

Eu me culpava, pensando que poderia ter feito a obra passar por um crivo editorial – mas, ai de nós, escritores, ou as editoras são grandes demais para responder nossos envios ou são pequenas demais e aceitam qualquer original a um preço abusivo. De qualquer modo, foi por essa mistura de culpa e constrangimento que me propus a esconder o romance, ou melhor, aniquilá-lo das bibliotecas públicas, das prateleiras privadas e, sobretudo e covardemente, das biografias que eu enviava aos prêmios e concursos literários que seguia sendo selecionado.

Felizmente o mundo está cheio de escritores covardes como eu: Moacyr Scliar, meu maior ídolo no conto nacional, também é um grande farsante. Ele publicou seu primeiro livro “Histórias de um médico em formação” ainda em 1962, e fez a mãe vende-lo de porta em porta pelo bairro do Bonfim, em Porto Alegre. Se você não conhece essa publicação é porque, tempos depois, a coitada da mãe do Scliar teve o trabalho de recolher os livros, já que o filho renegou a obra em sua bibliografia.

Outro exemplo de escritor covarde como eu é José Saramago. O Nobel de 1998 publicou Terra do Pecado, ainda nos anos quarenta. Mas, depois de se tornar um best-seller com outras obras a partir dos anos oitenta, renegou o romance de estreia. “Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu [mas] não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia.” Eu te entendo, Zé. Eu também já quis determinar o instante em que o verdadeiro eu-artista nasceu.  


Existem posições menos covardes que a minha, de Scliar e de Saramago. O mineiro Luiz Rufatto reescreveu seus dois primeiros livros de contos. Adicionando outros personagens do mesmo universo de Cataguases, publicou o bom Inferno Provisório. Outra posição interessante é esperar, como Freud. O psicanalista frustrou-se com seu “A interpretação dos sonhos” que, lançado em 1900, vendeu pouco mais de duzentos exemplares em seis anos. Só em 1907 o livro explodiu e se tornou a grande referência dele. Felizmente Freud não renegou a obra, assim escritores traumatizados podem ir à terapia.

Mas há uma espera ainda mais interessante que a de Freud: esperar pra publicar. Se você deseja ser um escritor publicado, e acha que escreveu algo fabuloso, espere o texto passar pela prova do tempo. A não ser que o Luiz Schwarcz insista muito, deixe o original numa pasta no seu desktop por uns meses e então releia. Se ela ainda fizer sentido, você pode iniciar o processo de buscar uma publicação, de preferência de modo coletivo, que envolva pessoas diferentes, contrapontos e críticas.

É claro que existem exceções. Torto Arado vendeu e agradou à beça, sendo uma obra de estreia (isso se o Itamar Vieira não tiver escondendo nenhum livro anterior por aí. Investiguemos). Ao pensar no escritor baiano, percebo que é por isso que excluí meu primeiro livro de minha bibliografia: porque ele não foi relevante como eu esperava. Idealizei uma estreia triunfante e me frustrei. Apagar o romance da memória dos leitores foi ter uma segunda chance de começar do zero, talvez modificando o estilo, a linguagem e o conteúdo. No fundo, eu escondi uma criação que julgava um fracasso.

Meu primeiro livro chama-se “Tempo severo”. Ele é ruim. Não indico a leitura. Mas não me envergonho mais dele. Faz parte da minha trajetória. Aprendi, com sua publicação, que eu prefiro a narrativa breve e que se danem as tendências do mercado editorial; aprendi que só devemos copiar nossos ídolos se formos competentes o bastante para disfarçar muito bem; aprendi, por fim, a ter calma antes de jogar uma criação nova no mundo.

Uma das grandes questões do escritor contemporâneo é se desfazer dessa figura eremita que o imaginário popular o atribui. Talvez reconhecer que temos fracassos artísticos possa ser um bom começo – um começo muito mais honesto que o das biografias omissas e, em última instância, imaginárias.


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