E aí, traiu? Capitu e a questão republicana

O possível link entre Dom Casmurro, obra de Machado de Assis, com a crescente descrença institucional no Brasil do século XIX

O possível romance de Capitu com Escobar é certamente uma das discussões mais curiosas da literatura brasileira, instigando instintos à la Sherlock Holmes nos jovens estudantes de literatura. Em diversos grupos literários, os leitores-detetives encontram pistas, ‘autos judiciais’, provas e contraprovas sobre a conduta sexual da possível tríade, mas em especial sobre o corpo de Capitu.

Por não ter muito interesse em romances normativos, prefiro apontar uma questão esquecida na batalha moral sobre o comportamento da protagonista: o reducionismo das escolhas, notadamente no Brasil republicano. Mais do que a paranoia com a ideia de traição, possivelmente Dom Casmurro nos alertasse sobre uma crescente descrença institucional que tomava o Brasil do século XIX. 

Se conseguimos imaginar que o casamento poderia ser uma imagem figurativa da emergente República, a suspeita da traição cria um desconforto desnecessário para a ordem democrática que conduzia o país para o século XX. É sempre válido lembrar que como parte da maré revolucionária do século XIX, o Brasil também navegava por um período de grandes transformações, notadamente desde a chegada da corte europeia em 1808, no Rio de Janeiro. 


LEIA TAMBÉM:

Porém, apenas com a Proclamação da República em 1889 – dez anos antes da publicação de Dom Casmurro em 1899, o país daria um passo estrutural em direção do que costumamos chamar de democracia. 

De forma curiosa, os escravocratas que eram ferrenhos na luta contra a abolição, em contrapartida apoiavam o projeto republicano porque ‘sonhavam’ com uma paisagem mais democrática no futuro nacional.

Contraditório, não? Não. 

E aí, traiu? Capitu e a questão republicana
Capitu foi interpretada por Letícia Persiles na série “Capitu”, da TV Globo. (Foto: Reprodução/Grupo Globo)

O projeto da tímida democracia republicana ainda excluía a maioria da população brasileira, tanto de participação quanto dos benefícios da cidadania, e o recém-casamento nacional com a República tinha escusas relações amorosas com a oligarquia. Temos então, uma traição republicana, uma vez em que a tão sonhada República era uma máscara em que velhas estruturas se disfarçavam de novidade política.

A suposta agenda democrática dava às oligarquias acesso total ao Estado e aos usos de seus aparelhos para construir soluções pró-latifúndios, que respaldariam a república do Café com Leite. Lembrando que neste sistema ora governava um senhor de engenho – também chamado anteriormente de senhor de escravos, ora governava outro.

E essa tal democracia fornecia quase nada para a massa de desvalidos ao redor do país. Uma população agora ‘livre’ para cumprir seu papel subserviente diante da República dos Latifúndios. Deixamos a escravidão e fundamos uma massa proletária extorquida e decepada no ponto de vista do direito; justamente, nos aproximando do ideal europeu, como queriam as elites. Novamente, vemos nos dias atuais a explosão do poder profético de Machado de Assis, pouca coisa parece ter mudado com as “novas” políticas.

Em termos gerais, se a monarquia como símbolo do regresso explorava as massas e insistia na escravidão, por outro lado a república oligárquica dava maior poder de decisão aos projetos dos grandes donos de terra no Brasil. 

É importante também lembrar que o projeto de abolição da escravatura, na visão liberal, tinha mais interesse na expansão do mercado consumidor do que na justiça social de uma reparação histórica. 

Em resumo, a presumida defesa dos interesses individuais estava profanada pelo interesse do grande capital e o Estado, ao invés de mediar o conflito de classes, seria a garantia institucional do privilégio das elites. 

E, por essas razões óbvias, a oligarquia como controladora dessa máquina apostava na República, já que seu poder econômico não teria a ameaça de uma monarquia que poderia mudar as regras do jogo. 

(Imagem: Reprodução/Facebook)

Mas, o que Dom Casmurro tem a ver com tudo isso? De novo, se podemos imaginar o romance como um jogo de espelhos em que a tensão amorosa de Capitu com o narrador anti-herói e com o seu rival/amigo bon-vivant, notamos que pouco importa com quem ela se relacione. Até porque o resultado dessa equação seria igual, mesmo se ela decidisse se relacionar com os dois ao mesmo tempo, ela estaria fadada a uma dinâmica, no mínimo, problemática. 

Mais do que uma verdade objetiva sobre as artimanhas amorosas, é possível que o texto nos convide a pensar sobre o que realmente mudaria para Capitu ao escolher entre Bento e Ezequiel. No caso da não traição, Capitu – ou o projeto nacional nos termos deste artigo, seguiria um sólido acordo matrimonial com uma monarquia representada pelo tradicionalismo débil de Bentinho. Por outro lado, a traição marcaria o flerte com um bon-vivant capitalista ilustrado pela obsessão comercial de Ezequiel Escobar. 

Resta a pergunta sobre que mudanças reais esperariam o futuro de Capitu dependendo da porta que ela decidisse abrir. Um conservadorismo monárquico que afirma que não temos direito ou uma República Oligárquica que finge que temos algum direito?

Talvez, antes de perguntar se Capitu traiu, deveríamos perguntar se ela não foi traída por ter opções afetivas tão parcas e decadentes. Talvez, o texto nos dá a função de radicalizar essas escolhas e imaginar o que seria de Capitu, caso ela tivesse alternativas de mudanças reais em seu horizonte.

Artigo escrito por André Nascimento e publicado pelo “Portal Viu!


Leia também: DOM CASMURRO: DO TEXTO LITERÁRIO AO FILME

4 comentários em “E aí, traiu? Capitu e a questão republicana”

Deixe um comentário