Jorge Luis Borges: Em busca de secretas modalidades do Ser

André Maurois afirmou em seu último livro que, tendo sido leitor toda uma vida, quando “velho tirava das leituras as mesmas alegrias que na adolescência, e essa felicidade se torna mais viva se posso, no espaço de um artigo, dizer aos leitores, jovens e velhos, que me distinguem com sua amizade, os motivos de minhas preferências e delícias”.

No espírito de Maurois, este cronista não quer disputar com os mestres, mas fazer com que sejam compreendidos e sobretudo sejam lidos. É o caso dessas notas sobre Jorge Luis Borges. Leia este início do poema “Elogio da sombra” – um dos seus mais belos textos:

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o nosso tempo de ventura.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e a alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão

Se o texto ecoa Cícero, promove o segundo passo, pois os “frutos da velhice são todas as lembranças do que anteriormente se adquiriu”.

Aos vinte e um anos, recém-casado, mudei-me para Porto Alegre. Foram anos de muito trabalho e estudo em que eu aproveitava o tempo livre na Biblioteca Pública Estadual do Rio Grande do Sul. Biblioteca como santuário, local que acolhe em silêncio os fiéis devotos da literatura.

Essas lembranças me levam ao Jorge Luis Borges que descobri naquela biblioteca e cujos livros fui adquirindo para o meu acervo pessoal ao longo de tantos anos. É o mesmo Borges que releio agora aos 65, com alegria similar àquela que sentira o leitor de 21 anos, que está aqui espelhado:

leitores¹
Daquele Hidalgo de citrina e seca
tez e de heroico afã se conjetura
que, em véspera perpétua de aventura,
não saiu nunca de sua biblioteca.
(…)
Jorge Luis Borges: Em busca de secretas modalidades do Ser

Leio Jorge Luis Borges há 44 anos e ele continua sendo para mim um dos escritores mais talentosos que continuo lendo com alegria, e concordo quando ele diz: “acho que a felicidade de um leitor está além da de um escritor, pois o leitor não precisa experimentar aflição nem ansiedade: o seu negócio é simplesmente a felicidade. E a felicidade, quando se é leitor, é frequente”.

Na juventude, ia tomando notas de tudo que lia e de tudo que desejava ler. Um livro leva a outro, como se sabe – e, assim, entre o setenta livros lidos naquele inesquecível 1976, anotei o “Diário da guerra do porco”, do amigo e parceiro de Borges, Adolfo Bioy Casares. Borges prezava muito o amigo:

Um dos principais acontecimentos desses anos – e de minha vida – foi o início de minha amizade com Adolfo Bioy-Casares. Encontramo-nos em 1930 ou 31, quando ele [Bioy] tinha cerca de 17 anos e eu recém passara dos trinta. Nesses casos sempre se presume que o homem mais velho é o mestre e o mais novo, seu discípulo. Isto talvez tenha sido correto no começo, mas mais tarde, quando começamos a trabalhar juntos, Bioy era real e secretamente o mestre.

E com isso, a biblioteca me retorna sempre com um Borges:

É esse meu destino. Sei que há algo
imortal e essencial morto e enterrado
naquela biblioteca do passado
em que li a história do fidalgo. (excerto de leitores)

Em 1968, George Steiner disse: “por muito tempo o esplendor de Borges foi clandestino, assinalado a raros eleitos, num escambo que se fazia a meia-voz e entre sinais de mútuo reconhecimento”. E que sucesso fez Borges: A fama, como a minha cegueira, vinha-me gradualmente. Nunca a esperara, nem nunca a procurara.

Começou a escrever aos sete anos. Esperar a fama até os 62 anos é algo memorável. Tudo começa a acontecer quando em 1961 Jorge Luis Borges ganhou o Prêmio Formentor, partilhado com Samuel Beckett e, então, seus livros foram publicados em inglês (Labyrinths e Ficções); daí se seguiu uma enxurrada de homenagens: o título Commendatore, do governo italiano; a Ordre des Lettres, na França; e os convites para as conferências que o elevam ao patamar de escritor mundial – Genebra, Londres, Oxford, Edimburgo, Harvard, Texas.

“Numa velhice adiantada”, brinca Borges, “comecei a ver que havia muita gente interessada em meu trabalho em todo o mundo”. Em torno dele foi criada toda uma indústria que fez dele um autor universal.

“Borges é argentino de nascença e temperamento, mas nutrido de literatura universal desde a infância” diz Maurois. De fato, “Borges não tem pátria espiritual”

Muito cedo, Borges sentiu-se envergonhado de ser um tipo livresco e não um homem de ação, diz em suas notas autobiográficas, acentuando que se me pedissem para nomear o acontecimento mais importante de minha vida, eu diria a biblioteca de meu pai.

Era quase impossível para Borges lembrar-se dos rostos de quem passou por sua vida à época, por conta da cegueira progressiva; tal não é o caso da memória, que ficou muito bem preservada.

Suas fontes são inumeráveis e inesperadas, pois Borges leu tudo, e especialmente o que ninguém lê mais: os cabalistas, os gregos alexandrinos, os filósofos da Idade Média. Sua erudição não é profunda; ele não lhe pede senão clarões e ideias; mas é erudição vasta. (Maurois).

Leitor precoce, Borges também muito cedo começou a escrever. Aos seis ou sete anos, confessa em Perfis: “Tentei imitar os autores clássicos espanhóis – Miguel de Cervantes, por exemplo. A primeira estória foi um escrito um tanto absurdo à moda de Cervantes, um antiquado romance de cavalaria chamado “La visera fatal”.

Aos nove, traduz “O príncipe feliz” de Oscar Wilde para o espanhol, que foi publicado no jornal “El País” (Buenos Aires) porque assinado como Jorge Borges o que foi tido como tradução do pai. Foi o pai quem revelou ao filho “o poder da poesia”. Homem de ação e “inteligente e muito amável” – diz sobre o pai, que ainda adiciona outra ao pai (a modéstia).

Na mãe, Leonor Acevedo Borges, ele reconhece sobretudo o companheirismo, especialmente depois de que ficou cego, além de ter sido a grande “protetora” e incentivadora da carreira literária do filho.

Aos 20 anos, Jorge Luis Borges vê seu primeiro poema publicado em Sevilha – “Hino ao Mar” é confessadamente imitação de Walt Whitman: “Ó mar, ó mito, ó ampla sepultura! / Sei porque te amo. /Sei que ambos/somos muito velhos, /que nos conhecemos há séculos…”

Borges foi muito imitado também, e até mesmo copiado por muitos, em exercícios nas escolas de letras ou entre os menos talentosos no papel de “pseudo-Borges”, cf. Steiner.

Sempre me perguntei por que, mesmo sendo um talentoso escritor de seu tempo, Jorge Luis Borges não tenha sido premiado com o Nobel. Por que não o foi?

O professor e escritor Ademir Luiz tem uma hipótese:

Ele não ganhou o Nobel por ter apoiado a ditadura militar. E todas as vezes em que Borges se aproximou do poder se deu mal. Foi contra Perón e se deu mal. Apoiou os militares e depois mudou de ideia. (…) Seu exílio na Europa mostra que resolveu aproveitar a vida de mito e deixar os problemas mundanos para quem se interessava mais por eles.

O poeta, o ensaísta, o palestrante, o homem público, para quem a cegueira não chegou como um raio ou um acidente inusitado, mas como uma doença progressiva, viveu uma espécie de “lento entardecer”.

Na cegueira está a variante pessoal mais significativa que o tirou do destino ancestral dos “homens de ação” da família e o conduziu às letras.

Este “lento crepúsculo”, não o impediu de ler, de recordar o que lera, de ouvir outros relendo para ele trechos que sabia de cor. A cegueira o fez mais compreensivo. É como se a cegueira o apaziguasse, pois ele a via como um dom.

Deus havia “trazido ao mesmo tempo os livros e as sombras” e isso “não foi um desespero nem tampouco uma infelicidade total”. Do meu poema favorito, Jorge Luis Borges explicita o seu sentido metafórico de sombra:

Demócrito de Abdera arrancou-se os olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.

Para Borges, uma consequência perceptível da cegueira “foi o abandono gradual do verso livre em favor da métrica clássica. Na verdade, a cegueira me fez retomar de novo a poesia. Já que rascunhos me eram negados, tive de recorrer à memória (…)

O verso regular é, por assim dizer, portátil. Pode-se descer a rua ou andar no metrô enquanto se compõe e se trabalha um soneto, pois a rima e o metro têm virtudes mnemônicas.”

Tal como em Homero, Milton, Joyce etc., a cegueira pode ter sido decisiva para a produção, pois foi obrigado a adotar “um novo modo de viver”.

Quando assumiu a diretoria da Biblioteca Nacional da Argentina, Jorge Luis Borges o fez como quem segue o Destino, pois era o terceiro dos presidentes cegos da entidade, depois de José Mármol e Paul Groussac. Esta coincidência de ter sido o terceiro entre os cegos na direção da Biblioteca, indica o destino: “se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação –  e confirmação de ordem ternária, quer dizer, divina ou teológica”.

De fato, foram cegos José Mármol, (1817-1871) – poeta, lembrado sobretudo por “Amália: um romance argentino”; Groussac, que, por sua vez, nasceu na França (1848) e faleceu em Buenos Aires (1929).

“Devo à cegueira muitos versos e o aprendizado de idiomas”. E se “Elogio da Sombra” é uma evidência objetiva de que o cego está apaziguado com o escritor e vice-versa, este poema é de autodefinição:

Um cego

Não sei qual é a face que me fita
Quando observo a face de algum espelho;
No seu reflexo espreita-me esse velho
Com ira muda, fatigada, aflita.

Lento na sombra, com as mãos exploro
Meus invisíveis traços. O mais belo
Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo
Que é já de cinza ou é ainda de ouro.

Repito que perdi unicamente
A superfície sempre vã das coisas.
O consolo é de Milton e é valente,

Mas eu penso nas letras e nas rosas,
Penso que se pudesse ver a cara
Saberia quem sou na tarde rara.

O escritor romeno Mircea Eliade nos fornece excelente caminho para traduzir a experiência borgeana de produzir arte escrita, em “Imagens e Símbolos”:

As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psiquê; eles respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser.

O poeta, como no caso de Borges, mesmo “fugindo à sua historicidade … não abdica da sua qualidade de ser humano para se perder na ´animalidade´; ele reencontra a linguagem e por vezes a experiência de um “paraíso perdido”.

Tudo isso está plenamente realizado em Borges, com elegância e beleza. Mergulhar nesses universos criados pode levar o leitor a este paraíso de prazer e felicidade.

Para saber mais sobre Jorge Luis Borges, visite este link: https://bit.ly/2WZLNGZ

¹Leitores (Lectores) é poema da seleta de versos (“O outro, o mesmo”, Edição bilíngue, 2009, pela Cia. das Letras, trad. Heloisa Jahn. O poema “Elogio da sombra”, de 1971, da Ed. do Globo, trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques. “Um cego”, trad. Fernando Pinto do Amaral é das Obras completas de Borges.

Esse texto foi publicado originalmente na Edição Jorge Luis Borges da Revista Recorte Lírico.

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