Considerações Sobre a Lírica Poética de Sônia Elisabeth
Tendo em mente um conselho do crítico paranaense Temístocles Linhares, e depois de ler (e reler) várias vezes os versos do premiado livro da goiana Sônia Elisabeth, sigo refletindo sobre os versos de “A Lírica Poética da Manhã que chega[1]” – porque, de fato, aqui o benévolo leitor encontrar-se-á diante de Poesia que exige reflexão de quem lê para que bem entenda e desfrute os poemas.
Linhares dizia que um analista não pode submeter a poesia a uma doutrina e a um método que não sejam os do(a) Autor(a), e que só pertençam ao comentador. Concordo e entendo que devemos fazer o contrário – que o comentador tenha a paixão pela leitura e se deixe empolgar pela poesia e não tente submetê-la à canga de suas teorias ou pontos de vista. Isso na prática, não é algo fácil de se alcançar.
Afinal, se é um judeu que lê um cristão, ou vice-versa, há-de submeter o texto à sua teoria ou ponto de vista firmado por anos de formação; o mesmo se um Amish lê um evangélico batista (ou vice-versa); mais ainda quando um marxista lê um católico (ou vice-versa). Há sempre um lodo para o crítico (ou analista) escorregar quando lê, principalmente quando lê Poesia sem paixão, mas movido apenas por uma razão desmedida.
O crítico de saudosa memória José Guilherme Merquior escreveu um livro com os dois verbetes – Razão do poema, onde se justifica no texto de abertura, dizendo estar “firmemente convencido de que o único racionalismo consequente é o que se propõe, não a violentar o mundo em nome de seus esquemas, mas a aprender em seus conceitos, sem nunca render-se ao ininteligível, sem jamais declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais obscura e mais contraditória”.
Eis-me aqui, pois, pretenso analista-crítico, diante de uma poesia que se impõe indagativa, lirismo que desfralda o verso livre, mas quase à beira da forma fixa, vivendo plenamente “O eterno e inútil acontecimento” intitulado Poesia e com qual Sônia se mostra plenamente consciente e desejosa de romper patamares, em relação às suas obras anteriores. E, novamente, volta-me Merquior para dizer que é preciso estarmos atentos ao fato de que “as formas artísticas não são inteiramente congruentes com o conteúdo” e que, por isso mesmo, é preciso evitarmos o dualismo forma-e-conteúdo já tão inteiramente superados, mas que em Sônia parece próximos de se harmonizarem.
Por não ser eu próprio um poeta capaz de formas fixas, vou me eximir de desbordar para esse território em que o poeta-crítico baiano Wladimir Saldanha pode sim ensinar muito, p.ex., em seu livro “Modos de romper a névoa”, onde exalta a volta da métrica, rima e ritmo em poetas como o goiano João Marra Signorelli, mas isso é tema de outro ensaio meu a sair em breve. Por ora, basta-me a bela poesia de Sônia que vale por seu ritmo, por sua temática, enfim, por sua relevância e validez no conjunto da experiência humana e, principalmente, no subconjunto da poesia feita em Goiás.
Se o benévolo leitor deixar por um momento estas minhas notas irrelevantes e abrir o livro da poetisa (e por não me render à questão de gênero para chamá-la Poeta, sei e afirmo que ela é Poeta e que se faz merecedora de estar à altura de qualquer cavalheiro que vem escrevendo versos na terra de Afonso Félix de Sousa – um mestre da arte poética em nosso Estado). Ela, Sônia, parece merecer aquele destino, aquele “Ofício de viver” do Afonso: “O mundo que encontrei já era isso. / O jeito foi bordá-lo/ com palavras.”
Eis-nos diante da nossa bordadeira que faz silêncio frente ao burburinho do mundo e abre assim sua Lírica diante do “terno e inútil acontecimento” que é a Poesia: “Sou lírica até os ossos/Nenhuma vaidade me subestima”. E o sensorial, como em Cecília Meireles, vai se desdobrando em nossa poeta, similar àquela análise de Linhares sobre a poesia de Cecília, aqui podemos notar aquela mesma “atitude sensual, uma visão física do mundo circundante [e diria, metafísico, quase dizendo aéreo], mas que não exclui a atitude intelectual, em torno de alguns temas eternos, como a precariedade [do homem e do mundo], a instabilidade da fortuna, a vaidade, a insatisfação amorosa, a dor como preço de felicidade etc.” A voz poética confessa:
“Atravessei o poema, de ponta a ponta,
Vindo desaguar num mar só de carícias,
(…)
Não sobrou-me quase nada,
Nem pudores, nem vestimenta,
Nem estigma.”
E ao flagrar a noite de sua composição, seu desafio de superação humana, a voz prossegue:
“Avistei sombras pela penumbra,
O que não é comum na dimensão humana,
(…)
Sabendo o que sou, alguns entoam
O canto mudo dos inconscientes,
Eis o prelúdio, a palavra,
O eterno e inútil acontecimento”
Mas ela não para, porque o Anjo da Poesia não o permite e ela prossegue: “Junto noites e auroras no mesmo jarro azul/…Junto amoras e vinho. Junto. / Para o sabor de minhas agruras”. Atenta à voz da inspiração, a poeta ouve o Anjo que adverte: “Olhei para o poeta e disse: Aos costumes! (…) Esconderei o poeta dos homens/…ficará instalado entre os vãos/E ferrugens das páginas dos livros. / Aliciado e tranquilo, o poeta.”
O anjo (ou a inspiração, que é também sudação e torpor) parecem exaurir a poetisa: “Dei-me às cinzas, à sepultura das noites. / Nada eterno, luzindo entre plumas…Nadar entre espaços – minha eterna sina. / E o corpo do anjo rente ao meu corpo, / Espuma que esconde os sexos. / E nós na surdina do êxtase prematuro”.
“Pelas benditas camadas de poesia” – prossegue o leitor atento. A mente que, similar à da voz poética parece “ser estranha e cinzenta” ao mundo oco de tantos ruídos e contendas, para e cede à “clausura do anjo e seu lume”. E a luz resplende na volta do anjo: “No grão da noite a poesia é silêncio/Num mar todo de diadema…Se não houvesse o anjo e asas/O voo seria um desencanto”.
Mas prova não ser a leitura um desencanto, porque o anjo vagabundo e seu sêmen procriam em novos versos pensados e sentidos (razão e poema): “Um eu lírico persegue-me e deslizo/No vegetal reino da inspiração…Vou ser dízimo e recompensa”.
Eis quem ganha: o leitor, aquele que insiste e que segue firme na senda da compreensão do poema, quando adentra ao “Tempo da improcedente Lírica (ou lágrimas de Aquiles)” e enxerga um pouco da realidade do nosso próprio tempo – em companhia “de um deus lírico que contempla o sol/…Pouca poesia” – pode afirmar que “o lamento dos justos sei todos /As cuias vazias de alimento./Sei do trágico pudor dos malditos…Nenhuma escravidão foi dilacerada./Estamos ausentes…/Nossa pouca gente/Viciada em algozes e mitos/O chão podre das encruzilhadas/Precipício”.
Então, decorre que não há senão lugar para fechar as cortinas e constatar consciente (neste quase anticlímax):
“Meu sonho imaculado
A lírica das horas mortas, passadas,
Aquiles em riste, enciumado
De alguma cena que não vivi.
Assim. Silêncio. O palco sem luzes.
Sem público debochado. Sem atores.
Só anjos. E anjos não querem aplausos.”
Três perguntas para a poeta Sônia Elisabeth:
1. Por que continuar escrevendo poesia hoje?
Sônia Elisabeth: A poesia é redentora, mágica. Tem todas as indagações e respostas que o Universo precisa. Poesia é o tudo e o nada que se complementam. Oxigênio puro.
2. A poetisa polonesa Wisława Szymborska dizia que os leitores de poesia “somos dois em mil”. Como você analisa esta poderosa frase?
Sônia Elisabeth: É justamente isso que faz a poesia ser o gênero literário mais especialíssimo. Deus me livre de unanimidade! Ter dois leitores de verdade entre mil já compensa escrever versos.
3. Goiás é um lugar que existe além do “sertanejo”?
Sônia Elisabeth: Sim, claro. Mudanças de mentalidades estão acontecendo aos poucos. A cultura já tem seu lugar, seja em forma de livros, boa música, artes plásticas etc., etc. O problema é que estereotiparam Goiás como a Pátria do “sertanejo “. Somos muito mais que essa breguice tosca.
[1] Editora Penalux, Guaratinguetá (SP): 2022, 96 páginas.