Considerações Sobre a Lírica Poética de Sônia Elisabeth

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Tendo em mente um conselho do crítico paranaense Temístocles Linhares, e depois de ler (e reler) várias vezes os versos do premiado livro da goiana Sônia Elisabeth, sigo refletindo sobre os versos de “A Lírica Poética da Manhã que chega[1]” – porque, de fato, aqui o benévolo leitor encontrar-se-á diante de Poesia que exige reflexão de quem lê para que bem entenda e desfrute os poemas.

Considerações Sobre a Lírica Poética de Sônia Elisabeth
Considerações Sobre a Lírica Poética de Sônia Elisabeth. (Imagem: Acervo Pessoal/Reprodução)

Linhares dizia que um analista não pode submeter a poesia a uma doutrina e a um método que não sejam os do(a) Autor(a), e que só pertençam ao comentador. Concordo e entendo que devemos fazer o contrário – que o comentador tenha a paixão pela leitura e se deixe empolgar pela poesia e não tente submetê-la à canga de suas teorias ou pontos de vista. Isso na prática, não é algo fácil de se alcançar.

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Afinal, se é um judeu que lê um cristão, ou vice-versa, há-de submeter o texto à sua teoria ou ponto de vista firmado por anos de formação; o mesmo se um Amish lê um evangélico batista (ou vice-versa); mais ainda quando um marxista lê um católico (ou vice-versa). Há sempre um lodo para o crítico (ou analista) escorregar quando lê, principalmente quando lê Poesia sem paixão, mas movido apenas por uma razão desmedida.

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Capa do livro de Sônia Elisabeth, ganhadora do Prêmio de Publicação Hugo de Carvalho Ramos, 2017 (UBE/GO)

O crítico de saudosa memória José Guilherme Merquior escreveu um livro com os dois verbetes – Razão do poema, onde se justifica no texto de abertura, dizendo estar “firmemente convencido de que o único racionalismo consequente é o que se propõe, não a violentar o mundo em nome de seus esquemas, mas a aprender em seus conceitos, sem nunca render-se ao ininteligível, sem jamais declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais obscura e mais contraditória”.

Eis-me aqui, pois, pretenso analista-crítico, diante de uma poesia que se impõe indagativa, lirismo que desfralda o verso livre, mas quase à beira da forma fixa, vivendo plenamente “O eterno e inútil acontecimento” intitulado Poesia e com qual Sônia se mostra plenamente consciente e desejosa de romper patamares, em relação às suas obras anteriores. E, novamente, volta-me Merquior para dizer que é preciso estarmos atentos ao fato de que “as formas artísticas não são inteiramente congruentes com o conteúdo” e que, por isso mesmo, é preciso evitarmos o dualismo forma-e-conteúdo já tão inteiramente superados, mas que em Sônia parece próximos de se harmonizarem.

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Por não ser eu próprio um poeta capaz de formas fixas, vou me eximir de desbordar para esse território em que o poeta-crítico baiano Wladimir Saldanha pode sim ensinar muito, p.ex., em seu livro “Modos de romper a névoa”, onde exalta a volta da métrica, rima e ritmo em poetas como o goiano João Marra Signorelli, mas isso é tema de outro ensaio meu a sair em breve. Por ora, basta-me a bela poesia de Sônia que vale por seu ritmo, por sua temática, enfim, por sua relevância e validez no conjunto da experiência humana e, principalmente, no subconjunto da poesia feita em Goiás.

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Considerações Sobre a Lírica Poética de Sônia Elisabeth. (Imagem: Editora Penalux/Divulgação)

Se o benévolo leitor deixar por um momento estas minhas notas irrelevantes e abrir o livro da poetisa (e por não me render à questão de gênero para chamá-la Poeta, sei e afirmo que ela é Poeta e que se faz merecedora de estar à altura de qualquer cavalheiro que vem escrevendo versos na terra de Afonso Félix de Sousa – um mestre da arte poética em nosso Estado). Ela, Sônia, parece merecer aquele destino, aquele “Ofício de viver” do Afonso: “O mundo que encontrei já era isso. / O jeito foi bordá-lo/ com palavras.”

Eis-nos diante da nossa bordadeira que faz silêncio frente ao burburinho do mundo e abre assim sua Lírica diante do “terno e inútil acontecimento” que é a Poesia: “Sou lírica até os ossos/Nenhuma vaidade me subestima”. E o sensorial, como em Cecília Meireles, vai se desdobrando em nossa poeta, similar àquela análise de Linhares sobre a poesia de Cecília, aqui podemos notar aquela mesma “atitude sensual, uma visão física do mundo circundante [e diria, metafísico, quase dizendo aéreo], mas que não exclui a atitude intelectual, em torno de alguns temas eternos, como a precariedade [do homem e do mundo], a instabilidade da fortuna, a vaidade, a insatisfação amorosa, a dor como preço de felicidade etc.” A voz poética confessa:

“Atravessei o poema, de ponta a ponta,
Vindo desaguar num mar só de carícias,
(…)
Não sobrou-me quase nada,
Nem pudores, nem vestimenta,
Nem estigma.”

E ao flagrar a noite de sua composição, seu desafio de superação humana, a voz prossegue:

“Avistei sombras pela penumbra,
O que não é comum na dimensão humana,
(…)
Sabendo o que sou, alguns entoam
O canto mudo dos inconscientes,
Eis o prelúdio, a palavra,
O eterno e inútil acontecimento”

Mas ela não para, porque o Anjo da Poesia não o permite e ela prossegue: “Junto noites e auroras no mesmo jarro azul/…Junto amoras e vinho. Junto. / Para o sabor de minhas agruras”. Atenta à voz da inspiração, a poeta ouve o Anjo que adverte: “Olhei para o poeta e disse: Aos costumes! (…) Esconderei o poeta dos homens/…ficará instalado entre os vãos/E ferrugens das páginas dos livros. / Aliciado e tranquilo, o poeta.”

O anjo (ou a inspiração, que é também sudação e torpor) parecem exaurir a poetisa:Dei-me às cinzas, à sepultura das noites. / Nada eterno, luzindo entre plumas…Nadar entre espaços – minha eterna sina. / E o corpo do anjo rente ao meu corpo, / Espuma que esconde os sexos. / E nós na surdina do êxtase prematuro”.

“Pelas benditas camadas de poesia– prossegue o leitor atento. A mente que, similar à da voz poética pareceser estranha e cinzentaao mundo oco de tantos ruídos e contendas, para e cede àclausura do anjo e seu lume”. E a luz resplende na volta do anjo:No grão da noite a poesia é silêncio/Num mar todo de diadema…Se não houvesse o anjo e asas/O voo seria um desencanto”.

Mas prova não ser a leitura um desencanto, porque o anjo vagabundo e seu sêmen procriam em novos versos pensados e sentidos (razão e poema):Um eu lírico persegue-me e deslizo/No vegetal reino da inspiração…Vou ser dízimo e recompensa”.

Eis quem ganha: o leitor, aquele que insiste e que segue firme na senda da compreensão do poema, quando adentra ao “Tempo da improcedente Lírica (ou lágrimas de Aquiles)” e enxerga um pouco da realidade do nosso próprio tempo – em companhia “de um deus lírico que contempla o sol/…Pouca poesia” – pode afirmar queo lamento dos justos sei todos /As cuias vazias de alimento./Sei do trágico pudor dos malditos…Nenhuma escravidão foi dilacerada./Estamos ausentes…/Nossa pouca gente/Viciada em algozes e mitos/O chão podre das encruzilhadas/Precipício”.

Então, decorre que não há senão lugar para fechar as cortinas e constatar consciente (neste quase anticlímax):

“Meu sonho imaculado
A lírica das horas mortas, passadas,
Aquiles em riste, enciumado
De alguma cena que não vivi.
Assim. Silêncio. O palco sem luzes.
Sem público debochado. Sem atores.
Só anjos. E anjos não querem aplausos.”

Três perguntas para a poeta Sônia Elisabeth:

1. Por que continuar escrevendo poesia hoje?

Sônia Elisabeth: A poesia é redentora, mágica. Tem todas as indagações e respostas que o Universo precisa. Poesia é o tudo e o nada que se complementam. Oxigênio puro.

2. A poetisa polonesa Wisława Szymborska dizia que os leitores de poesia “somos dois em mil”. Como você analisa esta poderosa frase?

Sônia Elisabeth: É justamente isso que faz a poesia ser o gênero literário mais especialíssimo. Deus me livre de unanimidade! Ter dois leitores de verdade entre mil já compensa escrever versos.

3. Goiás é um lugar que existe além do “sertanejo”?

Sônia Elisabeth: Sim, claro. Mudanças de mentalidades estão acontecendo aos poucos. A cultura já tem seu lugar, seja em forma de livros, boa música, artes plásticas etc., etc. O problema é que estereotiparam Goiás como a Pátria do “sertanejo “. Somos muito mais que essa breguice tosca.


[1] Editora Penalux, Guaratinguetá (SP): 2022, 96 páginas.

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