As velas

Os pontos luminosos pareciam em um carrossel pela alternância da intensidade do brilho dentro da escuridão. Poderiam ser sinais de um homem perdido no breu ou os olhos de uma fera sobrenatural ou a aura de seres diminutos benévolos flutuando tanto no interior quanto no exterior da casa. Excetuada a fantasia, restavam apenas crianças com velas nas mãos errando de um lado a outro nas trevas.

As velas tinham a altura da criança mais nova de seis anos de idade. A convivência com a noite convenceu a todos que participavam dos seus mistérios, tornando-se espíritos, sem carências materiais, livres para percorrer o bairro, desvendando o que lhes era impedido durante o dia pela pobreza. Por exemplo, o armazém. O problema: fantasmas não têm estômagos. Portanto, os doces ficariam intactos.

Reuniam-se em torno de uma das velas, observavam-lhe o derretimento, as formas assumidas pela cera enquanto não encontrava seu fim. A imaginação das crianças trabalhava rápida para interpretar o que lhes surgia. De animais a seres sutis, o desfile parecia sem fim. Algumas vezes, elas inventam animais fantásticos. Sem notarem, a fumaça desenhava sobre suas cabeças os seres fantasiosos nascidos dos relatos.

Em uma dessas vezes, a contemplação surpreendeu aos espíritos reunidos em torno da vela. A cera assumiu o formato de um pequeno anjo, consentiram todos, com as mãozinhas unidas em oração, o rosto sereno e a auréola. Rodeiam-na em busca da certeza do perfil, trocam impressões, admiram-se pela duração da imagem, sentem um conforto inédito. A companhia uns dos outros sempre lhes parecerá bastante e, agora, o vulto parecia imprescindível.

A fumaça circulou sobre suas cabeças em formatos assombrosos conforme o consumo da figura do anjo na cera. Uma discreta luminosidade acentuou-se sem escândalo no lugar, as crianças sentiam-se em uma tenda perfumada, os sorrisos puros miravam convidados invisíveis e as suas mãos diante do vazio recebiam um óbolo inestimável. O sono levou lentamente cada criança por um caminho desconhecido enquanto um holocausto angelical finda-se sem testemunhas.

A casa amanheceu perfumada sem ter sido feita nenhuma faxina. Todos permaneciam adormecidos, o último traço de escuridão escondia-se em um dos cômodos afastados, sem ser importunado pelos raios solares, preservado da inspeção dos olhos inquietos. Lá sentia-se uma poderosa respiração refrescando o ambiente, olhinhos buliçosos, sem distinção de corpo. O pequeno diabo velou até o final o companheiro derretido e o incenso desprendido do incêndio lhe recordou dias melhores.

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