O grafite

A primeira mumificação encontrada pelas autoridades pertencia a um homem esportivo pelo traje descoberto sob as tiras de cores esmaecidas e espirituais nas quais estava envolvido. Outro ponto curioso da análise foi a conservação dos órgãos internos no corpo do sujeito, geralmente são retirados durante a prática de conservação e armazenados em jarros. A morte, concluiu o inquérito, ocorreu por asfixia,  sem sinais de violência no corpo, além das fraturas nos braços e nos dedos indicadores de resistência às fitas. Os policiais movimentam-se rapidamente para o isolamento da área em que o morto foi achado, sem perceber um vibrante grafite abstrato no muro constituído por centenas de linhas coloridas contrastantes com a opacidade da cidade.

Um longo intervalo se impôs entre uma morte e outra pelo mesmo método, sem diferença de local. A nova vítima era uma mulher robusta, sem nada de especial. As riscas desciam apertadas pela silhueta da mulher, refaziam os contornos desaparecidos da carne, tornando atraente o perfil ordinário.  O reconhecimento dos familiares marcou-se pelo escândalo: o rosto sereno da morta com um leve sorriso. Os policiais repreenderam a si mesmos pelo desejo surgido pelo corpo inanimado da mulher, sentiam-se constrangidos e sem força para lutar contra os próprios sentidos agudos. A expressão da finada parecia orgulhosa do último ato conseguido sem dieta ou cirurgia.

Diante do muro grafitado, um jovem retoca a pintura ouvindo música. A proteção dos fones de ouvido faz com que se separe da cidade, aumenta sua concentração e o integra ao desenho em restauro. Às vezes, ele dança entre a aplicação de uma cor e outra, o corpo magro ajusta-se entre pincéis, latas de tinta e a escada. Logo outra pessoa aparece, cumprimentam-se, dividem o trabalho. Talvez fosse apenas uma impressão o descolorido acentuado das linhas entre os dois assassinatos. Talvez resultasse do desgaste produzido pela poluição, oxidando a tinta e desaparecendo em um atrito imperceptível. Talvez fossem as centenas de mãos em contato com uma ou outra parte do trabalho nas dezenas de fotografias destinadas às redes sociais. Era bonito demais para ser apagado.

Os dois jovens trabalharam quase ignorando a presença um do outro. Todo o painel reacendeu-se, os transeuntes interrompiam seus passos para observá-lo, parabenizam os rapazes, contribuem com moedas de valor baixo e voltam à rotina da cidade: os elevadores, os cruzamentos, os viadutos e as pontes. Um deles na escada com uma latinha de tinta enquanto um entregador distraído em uma bicicleta descia a rua e um acidente. O jovem da escada apoiou-se no muro, evitando a sua queda sem impedir a do líquido. A parede reagia ao escorrimento com uma irritação imprevista e uma longa atadura desprendeu-se do paredão.  Quando a bandagem subiu ao rosto do entregador, alguém atingia com uma marreta a pintura.


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