Monólogo de Segismunda
Abre-se o pano e aparece Segismunda, sentada à mesa de madeira escura, onde há uma rica ceia. Um único castiçal está aceso.
Segismunda — Ai! Como dói por sobre o seio
a finada ceia. Aceitai,
ó mobílias: é o que perdura
de quem lhes lavou; agora já não crê,
não suporta os pesos mais. Não há
sobre ti os panos, vasos nem pragais.
Dorme sem retratos e linhagem;
sobra o lenço que hoje lhes cobre
as partes tímidas. Nada vale,
mas sou tua escrava. Escutem, ó
antigos senhores: a sapatilha
calada no canto que era tua
agora é minha: calço-a, mas
não me serve; quando a vi nas mãos
da infantazinha, só pude
adorar, quietamente. Mas onde
está a velha infanta e o velho
passo perdido mansamente?
Haverá quem chame de morte.
Olha: é o quadro na parede
lacrimosa, onde há a Virgem
e Criança e Anjos. Perdi-os
todos nesta ceia naufragada:
a última ceia da família.
Ó antigos que se sentam à mesa
e não comem! Desposados de
um sono fundo, inquilinos
desta doida ceia. É isto
o que somos: morredouras vestes.
Carcaças de mãos postas, que todo
crânio é a nudez perpétua.
Não, não se assuste… É nesta
barroquidade que me deito!
Os quartos se recolheram, escuros
demais desde então: hão de crescer
em mim ao parto desta casa.
O mudo manto do telhado
cega a prece; clarão adormece,
armorial entre os meus dedos:
se esvai, como na ceia. Mas não,
não se assuste! É mesmo nesta
barroquidade que me afundo…
De erguer-se o canto, toda voz
se apaga: o Sol escravo encosta
o amanhecer eterno e lasso.
Devora, pois, a goteira imensa,
lágrima encharcada, leite meu.
Haverá quem chame de morte.
Tudo acaba, mas fico a sós
na ceia última da família.
Cegas e viúvas, as mobílias
se envolvem ao véu do mudo
adeus: é a minha pobre neblina
este chão, túnica única,
o frio canto dos antigos. Olha:
a casa guarda ainda o riso
último sob o quadro da Virgem
e Criança e Anjos; quieta
ante a vida eterna, fazendo-se
de morta. Ai, pobre de mim! Neste
fino ato amamentando
a morte, fazendo-me de morta.
Esse texto foi publicado originalmente na Edição Lucila Nogueira, da Revista Recorte Lírico.
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O AUTOR
Emanuel Goulart, mineiro, nascido em 1997. Professor de Filosofia da Arte, poeta e dramaturgo.
Instagram: @emanuelgalard