Santa Clarita Diet: Os Zumbis na Sociedade Contemporânea
Verônica Daniel Kobs
A série americana Santa Clarita diet, produzida pela Netflix e dirigida por Victor Fresco, foi lançada em 2017. O nome é uma alusão à cidade de Santa Clarita, na Califórnia, e esse detalhe é responsável por um importante diferencial, já que, na história, Sheila (Drew Barrymore) é uma zumbi, moradora do subúrbio, casada e mãe. A personagem, aparentemente, leva uma vida normal e o cenário citadino ajuda a disfarçar o fato de Sheila ter se tornado uma morta-viva. Aliado a isso, ela ainda é humana na aparência, anda e fala com destreza e consegue refrear seus instintos, agindo às escondidas e mantendo um estoque de sangue, vísceras e carne humana no porão de casa.
Todos esses eufemismos em relação ao zumbi clássico justificam o uso do adjetivo diet no título, consolidando a remidiação. Nesse sentido, a humanidade de Sheila possibilita intensa mudança, para suavizar a monstruosidade da protagonista, em vez de potencializá-la. Trata-se de uma espécie de paródia às avessas, que tem o propósito de explorar com mais profundidade a insegurança que paira sobre Santa Clarita. Seguindo a ideia do disfarce, os cartazes de divulgação da série investiram na duplicidade, apresentando partes do corpo humano como iguarias gastronômicas (Fig. 1):
A estratégia visual de transformar algo grotesco em comidas de consumo diário obedece àquele equilíbrio que Noel Carroll considera necessário às narrativas de terror e horror, como demonstrado na seção anterior deste artigo. Por um lado, Sheila é normal na aparência, o que potencializa o terror, já que há mais chances de ela se aproximar de suas vítimas, sem ser notada. Entretanto, essa atmosfera é atenuada pelas situações engraçadas, como, por exemplo, o fato de Sheila levar dedos humanos em um saquinho, caso sinta fome, durante o trabalho. Devido a esse cruzamento, Santa Clarita diet pode ser classificada como uma “‘zombédia’ (a comédia zumbi)” (Superinteressante 2012: 39).
Tanto a aparência de Sheila quanto o lado humorístico da série remidiam os filmes de terror com protagonistas zumbis, gênero do qual George Romero é o maior representante. Embora, quase sempre, o texto literário seja anterior ao fílmico, no caso dos zumbis essa ordem foi invertida: “os zumbis passaram de modo quase direto do folclore para as telas do cinema, sem antes terem vivenciado […] uma fase literária” (Superinteressante 2012: 37). Dessa forma, nos clássicos de Romero, os zumbis são putrefatos, catatônicos, agem por instinto e se comunicam por grunhidos. No entanto, Sheila é uma zumbi loira, de aparência sadia e desenvolta em todos os sentidos (Fig. 2):
Longe de ser uma novidade, a remidiação que neutraliza os traços de monstruosidade consolidou-se como uma tendência, nas últimas décadas. No caso dos vampiros, essa humanização foi paulatina, considerando, respectivamente: Conde Orlok, em Nosferatu (1922); Lestat de Lioncourt, no longa Entrevista com o vampiro (1994); e Edward Cullen, na saga Crepúsculo (2008-2012). Já, no universo dos zumbis, o mesmo processo pode ser assim exemplificado: as criaturas do filme A noite dos mortos-vivos (1968); o protagonista R., de Meu namorado é um zumbi (2013); e Sheila, de Santa Clarita diet (2017).
Na série, Sheila torna-se zumbi após consumir frutos do mar contaminados. Nesse momento, consolida-se o fantástico na obra, por meio dos sintomas que a personagem apresenta, até descobrir sua nova condição. Posteriormente, os estranhamentos atingem uma segunda fase, na qual Sheila tenta esconder seu estado do marido Joel (Timothy Olyphant) e da filha Abby (Liv Hewson). Finalmente, em uma terceira etapa, as estranhezas restringem-se aos momentos em que a protagonista (com ajuda e conhecimento da família) precisa matar seus desafetos para sobreviver. Dessa forma, na série, o fantástico sofre um atenuamento, quando comparado ao livro de Vieira, e equivale ao “tempo de uma vacilação: vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da ‘realidade’, tal como existe para a opinião corrente” (Todorov 1982: 24, grifo no original). Em Santa Clarita diet, as dúvidas são sucessivas e dizem respeito: ao modo como a própria protagonista vai lidar com o fato de ser uma zumbi; à maneira como a família vai responder à novidade; e às atitudes da vizinhança em relação às mudanças de comportamento de Sheila.
Essa diluição do fantástico é favorecida pela estrutura sequenciada e substitui o clímax pela “noção de episódios semiautônomos” (Melo 1988: 32). Trata-se do formato “teleológico” (Machado 2003: 84) e isso facilita o atenuamento e a consequente transição do fantástico para o maravilhoso, já que os estranhamentos vão sendo aceitos, aos poucos, pelos personagens. Isso abrevia a surpresa e o questionamento, resultando “num universo de ficção total onde o verossímil se assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se poderia chamar de uma verossimilhança interna” (Rodrigues 1988: 12-13, grifo no original). Corroborando essa afirmação, Jacques Aumont aponta três categorias de verossimilhança: “O verossímil diz respeito, simultaneamente, à relação de um texto com a opinião comum, à sua relação com outros textos, mas também ao funcionamento interno da história que ele conta” (Aumont 1995: 141).
Até mesmo o público reconhece essa coerência interna, compartilhando, a cada episódio, do dilema que envolve Sheila e Joel: ela deve transformá-lo em zumbi, tornando-o imortal? Esse tipo de dúvida é mais comum nos filmes de vampiro. No entanto, a série utiliza o recurso, para consolidar o fato de que Sheila não ameaça seus familiares. Consequentemente, eles não terão que matá-la. O marido e a filha são seus aliados, e isso reconfigura completamente as narrativas clássicas de zumbis. Em vez de ser dominada pelo instinto, Sheila decide usar sua condição não para tirar a vida do marido, mas para presenteá-lo com a eternidade.
Desse modo, nas cenas de violência, a família de Sheila é sempre cúmplice ― antes, durante ou após o fato. Embora Joel e Abby resistam, no início, ambos acabam se acostumando com os respingos de sangue e os pedaços de corpos pela casa. Tudo pelo bem de Sheila e pela discrição. Nesse contexto, conforme já mencionado, a estética trash instaura o horror de forma exemplar, na série, pois os recursos audiovisuais intensificam o efeito que as palavras podem apenas sugerir. Portanto, nessa produção as imagens se concretizam, aproximando o público da violência, a cada ataque (Fig. 3).
Nessa cena, a estética trash caracteriza-se pela quantidade de membros, vísceras e sangue, nas paredes, nos armários e na bancada da cozinha. Por esse motivo, o trash corresponde, simultaneamente, ao exagero das narrativas de horror e do próprio gótico, sobretudo no que se refere à categoria das “Conotações estilísticas” (Cavallaro 2002: 9). Comentando a utilização desse recurso, na literatura gótica e nas mídias audiovisuais, Aparecido Rossi afirma que o “horror não precisa mais do que uma boa descrição de jorros de sangue ou […] pedaços de corpos. […] justamente por essa facilidade em sua construção, o horror perde o sentido e se torna gratuito se não vier acompanhado ou sobreposto ao terror” (Rossi 2014: 68). Em Santa Clarita diet, essa combinação é respeitada e se torna ainda mais complexa, porque a intensificação do terror pelo horror ocorre apenas no primeiro momento. Depois disso, o excesso dá lugar à comédia.
Aprofundando o horror, na série, percebe-se a questão da alteridade, na história representada pela oposição entre iguais, sobretudo considerando que a aparência de Sheila não se altera, quando ela vira zumbi. Em essência, se a série for comparada à obra de Vieira, o problema da individualidade é agravado, permitindo a retomada dos postulados de Zygmunt Bauman. Conforme demonstrado, na seção anterior, esse teórico afirma o fim das comunidades e o espaço de Santa Clarita, no seriado, representa isso, quando seus moradores começam a desaparecer, depois que Sheila se torna uma morta-viva. A rigor, a violência deve ser mantida fora da área comum, mas esse princípio é desrespeitado e a ação da protagonista zumbi, que é peça-chave nesse processo, acaba liberando “todas as dissensões, rivalidades, ciúme e querelas dentro da comunidade” (Bauman 2001: 221). Sob essa perspectiva, o individualismo reconfigura as relações interpessoais, consolidando a importância das narrativas de horror, que “emergem em tempos de tensão social” (Carroll 1990: 207).
Seguindo essa configuração, a comunidade de Santa Clarita vive sob ameaça de um inimigo sorrateiro e invisível: uma zumbi na forma de mulher. De modo cômico, esse artifício representa a insegurança gerada pelo ataque às torres gêmeas, em 2001. De acordo com especialistas, esse fato ocasionou a retomada dos mortos-vivos e do gótico, em pleno século XXI: “o zumbi atinge proeminência inegável no mundo pós-11/09 para representar, de maneira avassaladora, as angústias tanto individuais quanto sociais” (Gomes 2014: 98). Portanto, metaforicamente, os “zumbis representam as forças externas que ameaçam a sociedade” (St. John 2006).
Ao longo dos séculos, a relação entre fantástico, gótico e terror tem possibilitado uma proximidade segura de monstros e catástrofes. Para Steven Bruhm: “Paradoxalmente, nós precisamos da consciência consistente da morte, proporcionada pelo Gótico, a fim de entendermos e desejarmos a vida” (Bruhm 2002: 274). Também focalizando essa polarização, Dani Cavallaro defende que o gótico “provoca medo extremo” para “encorajar a expulsão do objeto amedrontador” (Cavallaro 2002: 9). Dessa forma, em Santa Clarita diet, embora Sheila represente uma violência sanguinária e a morte, trata-se de uma ficção, que amplia a realidade exponencialmente, em uma simulação lúdica, cuja finalidade é transformar o desconhecido em algo já experimentado, por meio da arte.