Crônica de uma gravidez desejada

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Toda a gravidez é desejada. É desejada consciente ou inconscientemente – para mais explicações consulte um psicanalista perto de si.

O jantar amoroso decorria como habitualmente, um espectáculo de som e cor com dois gárrulos apaixonados. Comunico que pedi ao Carlos que fizesse uma tiragem do Tarot para nós dois. Não acredito no Tarot, mas quando alguém entra na nossa vida queremos sempre saber o futuro. Roland Barthes diz que deveríamos sempre desejar que acabe e não que dure, mas eu sou da escola antiga, naquele momento quero sempre que dure, tenho o resto da vida para me arrepender. E o Carlos diz que saiu o Dez de Copas e que estão duas crianças no baralho.

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Ao que ela me responde “ pois fique sabendo que posso estar grávida”. Maldito Tarot, maldito Carlos, logo eu que não acredito em bruxas. A gravidez apavora qualquer um, mas eu sou o “grande Frank Wan”, para mim, a gravidez faz, simplesmente, parte da vida.

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O destino “sorteado” no tarot que sela os próximos passos da vida. (Foto: RODNAE Productions/Reprodução)

Respondi que já vamos lá abaixo comprar um teste de gravidez. Vi a minha vida como num filme: lá vou eu à farmácia comprar um teste de gravidez…. aproveito e compro já chupetas… sou muito prevenido!

O jantar continuou amoroso e colorido, mas nós já ouvíamos uma criança a chorar, aliás, segundo o filho da puta do Carlos, duas.

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Descemos, entrámos na farmácia que estava semivazia com as empregadas todas a olhar para aquele casal improvável, ela vinte e cinco anos mais nova que eu e gelei a farmácia com um pedido simples: queria um teste de gravidez.

As senhoras da farmácia vieram todas “ajudar”. Não sei o que ajudavam. Talvez fosse solidariedade feminina. Eu mantive a minha calma olímpica e bonomia, já vivi tudo na vida, de bom e de péssimo, nada me tira o sono, darei um morto tranquilo.

Por algum motivo que me escapa, contei às meninas, incluindo a candidata a grávida, que a minha última filha ainda tem o teste de gravidez que anunciou a vida dela… e aquilo comoveu a plateia feminina. E quase me comoveu a mim.

De repente, estávamos todos a falar de outra gravidez, de vinte e três anos atrás. Talvez para espantar a angústia (delas) desta gravidez.

Outra mulher, outra gravidez, outra vida. A mãe dessa minha filha era um anjo do céu. Guardou o teste de gravidez para o deixar para a filha e, não sei se devido à sua inteligência extraordinária ou a alguma presciência da sua morte prematura, escreveu a história toda da gravidez, fotografou tudo e guardou tudo. Escrevia como uma princesa e era linda como uma deusa, não podia deixar de ser a melhor mãe do mundo.

O espólio de toda a vida dela está guardado dentro da cama baú da minha filha. A minha filha dorme em cima da herança que a mãe lhe deixou: uma profusão de diários com detalhes minudentes, fotografias expressivas, teste de gravidez, corte do primeiro cabelo, etc.

Três cancros mais tarde a vida fugiu-lhe. Fiz tudo o que pude por ela e fiquei com o produto do teste de gravidez: uma filha linda com asperger. Toda a vida é linda e acompanhada de dificuldades. Um dos segredos da vida é não fugir às dificuldades. As dificuldades só acabam na morte. Ainda prefiro as dificuldades.

Voltando à candidata a grávida. Deixámos a farmácia lacrimejante e fomos para casa, primeiro fumar um charuto, arriscando assim a vida, e depois procedemos ao teste. O teste deu negativo, fumamos outro charuto e aproveitámos o resto da noite para arriscar um pouco mais.

Esse grande risco que se chama vida.


Você pode ler a “Crônica de uma gravidez desejada” e outros textos na Coluna “A Literatura ou a Vida“, do Frank Wan. Acesse em: https://recortelirico.com.br/autor/frankwan/

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