Lady Chatterley’s lover, sexo, palavrões e Literatura
Sob muitos aspetos O Amante de Lady Chatterley é um marco na história da Literatura: por um lado, muitas fronteiras do Romance foram ultrapassadas, por outro, a obra está no centro de diversas linhas ideológicas, sexuais, políticas e sociais. Este ensaio não tem qualquer pretensão a “análise textual”, levanto aqui apenas algumas temáticas que se enovelam no autor, na época, na publicação e na trama centrando-me nos registos de linguagem.
Embora D.H. Lawrence tenha terminado as primeiras versões nos anos 20, a versão “final” e sem cortes só foi publicada em Inglaterra em 1960. A anterior tentativa de publicação foi alvo de um “julgamento por obscenidade” ao abrigo da famigerada Obscene Publications Act 1959 (Lei das publicações obscenas de 1959). O conjunto de obras proibidas pelo ato é extensa, interessante e, como é apanágio de todos os pseudomoralistas, pouco inteligente. Há uma adaptação deste julgamento, onde participaram como testemunhas E. M. Foster e outros, para cinema sob o título de The Chatterley Affair – embora se percam interessantes aspetos técnicos da discussão filosófica utilizada na adaptação à linguagem cinematográfica, o julgamento está retratado de forma bastante fiel e colorida. A edição do romance foi proibida numa lista considerável de países.
O romance gira em torno da relação adúltera entre uma senhora nobre e um mero empregado da casa – tema com diversas implicações nas mentalidades de 1920; é escrito numa linguagem extremamente descritiva onde são retratadas cenas de sexo explícito com toda a dinâmica emocional e física implícita a que se soma a utilização de termos sexuais saídos da gíria popular e até de vulgaridades de cariz pornográfico e escatológico.
Obscenidades
A utilização de linguagem obscena não resulta de algum vago desejo de criar um objeto pornográfico, mas sim de toda uma conceção política e de um élan estético. A obscenidade não é apenas mais um elemento da obra, foi ela que impediu a sua publicação, que criou diversos problemas graves ao autor e foi, justamente, a parte que o autor nunca abriu mão. A vida da obra teria sido amplamente facilitada se D.H. Lawrence tivesse aceitado cortar certas cenas e alterar alguns termos.
As descrições sexuais não são mais do que a ressonância das polarizações indústria vs natureza e nobreza vs povo: os primeiros encontros sexuais são, simbolicamente, no meio do campo, sem todos os confortos, por exemplo, de um hotel e os parceiros sexuais são socialmente improváveis. Embora a forma possa ser a mesma, utilização de linguagem forte chocando o leitor, não há, como em grande parte da Literatura da época, um desejo de “épater la bourgeoisie” como no caso do movimento Decadentista: Lawrence utiliza instrumentos literários novos com objetivos clássicos – tudo no romance é uma mistura de novo e antigo.
Embora todo o romance, formalmente, seja escrito segundo os cânones da estilística vitoriana, correm dentro dele já as temáticas profanas com linguagem sexual. Neste aspeto, é uma obra que antecipa o mundo contemporâneo que é totalmente obcecado com as temáticas sexuais. No mundo moderno o sexo e a sexualidade definem a identidade do indivíduo e, em muitos grupos sociais, é mesmo, à falta de melhores bandeiras, motivo, muitas vezes exclusivo, de opção política. Lawrence antecipa já, ao cruzar a sexualidade subversiva com questões sociais, este mundo em que as opções políticas são consideradas obsoletas (o que é a direita e a esquerda?), mas a identificação com alguma utilização particular dos genitais tem todo o sentido e torna-se mesmo, histericamente, a única e exclusiva bandeira “política” e de ação social.
Lady Chatterley, após as visitas sexuais, regressa a casa e é exposta a um mundo que lhe é cada vez mais estranho: tem de ouvir as infinitas leituras dos escritos do marido, ouvir as discussões filosóficas dos amigos ao serão e é ainda exposta às barbaridades pró-fascistas que saem da boca do marido – em larga medida, Clifford Chatterley, ecoa o pensamento, muitas vezes na fronteira do nazismo, de D. H. Lawrence: fascista de dia, homossexual à noite.
Política
A recente industrialização do mundo do início do século XX é tema de reflexão transversal à criação artística. À Natureza, opõe-se a monotonia da mecanização industrial. Clifford Chatterley é dono das minas, estando condenado a uma cadeira de rodas, é um homem intelectualmente muito ativo e, a par de uma prolixa produção literária, está sempre atento aos seus bens, é numa dessas voltas pelas suas propriedades que Lady Chatterley conhecerá o seu futuro amante, e pretende relançar com novas ideias a modernização das minas. Paira sobre a elite inglesa a sombra da greve, do bolchevismo, do comunismo, do anarquismo.
Há uma divisão em três planos dos registos de linguagem: na pequena casa, no meio do campo, predomina a linguagem íntima dos encontros sexuais; na casa dos Chatterleys a linguagem familiar obedecendo aos padrões de educação e, nas viagens de Lady Chatterley, a linguagem comum social da época. Se é verdade que Lady Chatterley, personagem, se propõe saltar a fronteira das relações amorosas padronizadas, a obra desafia os limites das proibições da linguagem sexual: afinal, a forma como uma sociedade lida com a sexualidade, linguagem e grafismo diz muito sobre quão livre ela é. O mundo contemporâneo foi também fazendo este percurso: esbatendo as fronteiras entre o público e o privado – publicamos fotografias da mesa de almoços de família e fotografias em lavatórios públicos.
Os amantes, de alguma forma, eram os extremos dos respetivos meios sociais: Connie rapidamente percebe que a deferência com que a tratam é também uma forma de frieza, de afastamento e de elitismo dos pobres tão típico em Inglaterra, não é por acaso que, após outros encontros amorosos extraconjugais, se interessa por alguém fora dos seus meios e Millors (amante) é alguém que, devido à guerra esteve próximo das elites, mas que, finda a guerra, como diz o elitista Clifford, volta ao seu meio natural – obsessão eterna “inglesa” pelos extratos sociais, quase no limite de “castas indianas” mas com outras roupagens linguísticas.
Sempre que Millors é “obrigado” a interagir com os Chatterleys ou com alguém do seu meio recorre ao dialeto local, responde sempre no dialeto de Derby – embora seja muitas vezes confundido, como é o caso da irmã de Connie, com o dialeto de Yorkshire. A utilização do dialeto é uma forma de resistência de classe e, no caso, até de alguma misantropia.
Na descrição dos encontros sexuais, Millors, durante os atos sexuais recorre a vulgaridades e obscenidades. São utilizados termos correntes vulgares que era impensável na época publicar. A ser verdade, segundo Nelson Rodrigues, a boutade segundo a qual “nem todas as mulheres gostam de apanhar, apenas as normais”, também o é que a utilização de linguagem brejeira não é incomum no ato sexual e isso é transversal a todos os extratos sociais, como ouvi a uma admiradora confessa de Nelson Rodrigues, “nessa hora,nenhuma mulher quer ser respeitada”. O crime de D.H. Lawrence é apenas o de ter descrito de forma vernacular aquilo que sempre se passou, em algum subconjunto da humanidade, “nessa hora”.
Much ado about nothing, Connie acaba como, no fundo, queria: ficou com o homem com quem teve melhores orgasmos e acabou a mudar fraldas e a fazer o almoço do marido.