Quando os jornais viram manchete na literatura
O conto Rremembranças da menina de rua morta nua, de Valêncio Xavier, diferentemente da novela O mez da grippe, utiliza textos sensacionalistas. Até mesmo a editoria escolhida, a policial, contribui para dar maior popularidade ao texto. No entanto, nem por isso o autor abre mão de questionar a manipulação do discurso e a variação no modo de diferentes veículos da imprensa apresentarem o fato. A abertura do conto apresenta o título no formato p&b (Fig. 1), uma clara alusão à tipografia e aos jornais impressos:
Desta vez, o crime escolhido pelo autor foi o assassinato de uma menina de rua. A manchete publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 8 de abril de 1993, reproduzida cinco vezes, em uma única página do livro, por Valêncio Xavier, apresenta o fato ao leitor (Fig. 2):
A imagem acima multiplica a notícia: “Menina é achada morta em trem-fantasma. _____, de 8 anos, foi encontrada num caixão de brinquedo, nua e ferida, por funcionários de um parque de diversões de Diadema”(XAVIER, 2006, p. 43, grifo no original). O crime ganhou repercussão também no jornal Folha de S. Paulo e no telejornal Aqui Agora, cuja referência surge já na primeira página do conto, por meio da reprodução de uma matéria sobre a atração sensacionalista do canal SBT. A resenha foi originalmente publicada em 27 de março de 1993, no encarte intitulado Caderno TV, do Jornal do Brasil (Fig. 3):
Pelo fato de o programa Aqui Agora ser veiculado na televisão, o texto de Valêncio Xavier é construído em forma de roteiro, como se transcrevesse uma edição do programa. As falas do repórter Gil Gomes são transcritas, no livro, sem cortes, com as repetições e com o apelo sensacionalista que lhes são característicos:
8 DE ABRIL DE 1993 – QUINTA-FEIRA SANTA
GIL GOMES NUM TERRENO BALDIO EM FRENTE AO
JARDIM CAMPANÁRIO DIADEMA GRANDE SÃO PAULOGIL GOMES: É um problema paulista, é um problema brasileiro. Em qualquer esquina, em qualquer esquina, qualquer semáforo, meninos de rua, meninas de rua. (XAVIER, 2006, p. 41, grifo no original)
Sem dúvida, os leitores que tiveram a oportunidade de assistir a uma edição do programa Aqui Agora reconhecem imediatamente as marcas do discurso de Gil Gomes, as quais o autor fez questão de preservar, em sua narrativa. A repetição imprime um ritmo lento ao texto, ao mesmo tempo em que reforça o apelo emotivo causado pela notícia, no telespectador. Além disso, as matérias do programa eram ao vivo, o que exigia bastante improvisação e desenvoltura por parte dos repórteres.
O apelo sensacionalista pode ser percebido ainda pela ênfase à oralidade e pelas interferências causadas pelos comentários do repórter no depoimento dos entrevistados. Essas marcas podem ser percebidas na transcrição da entrevista que Gil Gomes faz com a mãe da menina assassinada:
Você tinha doze anos. Doze anos? Doze anos. Você arrumou o Toninho como namorado. Como namorado. Parecia aquela paixão de menina, ele parecia o Príncipe Encantado. Príncipe Encantado. (Gil olha para a câmera) E ela se entregou a ele (Ela concorda com a cabeça) […]. Aí uma sucessão de problemas. Altos probremas. (Chora). (XAVIER, 2006, p. 47, grifo no original)
No trecho acima, as falas do repórter aparecem em itálico e as repetições que a entrevistada faz do final das falas de Gil Gomes evidenciam a orientação do depoimento. Relevantes são também o olhar do repórter para a câmera, fazendo uma pausa providencial antes da fala “E ela se entregou a ele”, o uso da imagem do Príncipe Encantado e o choro da entrevistada. Além disso, o crime que é notícia envolve uma criança, que tem sua foto exibida nos jornais. Mas o sensacionalismo não para por aí. Ao final da matéria, Gil Gomes faz vários questionamentos e usa o rótulo “Menininha de Diadema” para se referir à vítima (Fig. 4):
No texto da figura 4, destacamos alguns trechos: “Quem teria matado _____? […]. E, por enquanto, tudo é mistério. […]. O local de diversão, de brinquedos. O medo virou medo de verdade. A morte da Menininha de Diadema… Gil Gomes Aqui Agora” (XAVIER, 2006, p. 56). O diminutivo “Menininha” tem função totalmente emotiva, nesse caso. Além disso, como se não bastasse o exagero próprio do sensacionalismo, a criação de uma alcunha para se referir à vítima não esconde o fato de que a imprensa realmente investe na construção narrativa e na manipulação das informações. Isso vai ao encontro do que Tomás Barreiros afirma, em Jornalismo e construção da realidade:
[…] o jornalismo não reproduz a realidade, mas constrói textos com efeito de sentido de verdade. A realidade apresentada nas páginas dos jornais é a realidade construída pelos próprios jornais, que apresentam ao leitor uma verdade fabricada graças ao uso de técnicas que buscam causar no leitor a impressão de que […] é o simples relato objetivo dos fatos […]. (BARREIROS, 2003, p. 19, grifo no original)
Aliás, a última página do texto não deixa passar em branco a discrepância entre os jornais, no que se refere à idade da vítima. Alguns informavam que a menina tinha oito e outros, nove anos (Fig. 5). De modo crítico e bastante bem humorado, o livro se encerra com a pergunta:
Enquanto o caso da garota assassinada é apresentado, há cortes, para chamar o intervalo comercial, dar outras notícias e também para anunciar as próximas atrações da emissora, conforme demonstra este exemplo:
INTERVALO COMERCIAL
Corta para Mônica Waldvogel no estúdio:
Veja no Telejornal Brasil: a mesa da Câmara está aprovando uma verba de deixar todo mundo de boca aberta. Os deputados federais vão ter 216 milhões de cruzeiros para tratar dos dentes. Veja também: um misterioso desmaio vem atacando meninas de até dezessete anos no Egito. O TJ Brasil começa depois do Aqui Agora. (XAVIER, 2006, p. 49, grifo no original)
As rubricas promovem, no texto, a alternância de interlocutores, de fatos e de linguagens. As notícias anunciadas por Mônica Waldvogel contrastam com o assassinato apresentado por Gil Gomes. Aliás, essa diferença existe dentro do próprio programa Aqui Agora. Nos momentos em que aparece a rubrica: “CORTA PARA APRESENTADORES NO ESTÚDIO” (XAVIER, 2006, p. 49), os temas e o tom mudam completamente. Morganti, Luiz Correa e Cristina Rocha são responsáveis pelo lado mais sério do programa. Eles informam sobre a situação econômica da França e sobre a arte de colorir ovos para a Páscoa. A intenção é dar variedade de assuntos e de perfis ao público. Evidentemente, ao fazer isso, o programa aumenta e diversifica o seu público, formado por aqueles que preferem uma linha mais sóbria, mas também por aqueles que apreciam o jeito inigualável de Gil Gomes apresentar os casos mais escabrosos da editoria policial.
A sequência escolhida por Valêncio Xavier, para mostrar as várias versões sobre o mesmo fato, promove uma forte associação entre as notícias impressas e aquilo que é apresentado no Aqui Agora. É como se o programa fosse feito, a partir do que o jornal impresso publicava a cada dia. O que comprova essa característica é o fato de a história trazer uma notícia informando que a menina morta almoçava diariamente na Febem e, logo em seguida, aparecer um trecho do telejornal, iniciado com a rubrica: “GIL GOMES DEFRONTE À FEBEM” (XAVIER, 2006, p. 48). Essa continuidade entre as pautas dos jornais impresso e televisivo revela a exploração da mídia, superexposição que resulta na construção de mitos como o da “Menininha de Diadema”. Há, no entanto, certa incongruência na escolha do fato que receberá maior projeção. Às vezes, casos mais violentos são abafados, enquanto uma história, como a da criança morta, é repetida dia após dia, ganhando destaque mais pelas suposições do que pelo fato em si.
Que função tem a imprensa, afinal? Se ao menos as especulações servissem para ajudar a polícia na resolução do caso, a superexposição seria válida. No entanto, na maioria das vezes, o crime é noticiado nos jornais por um longo período de tempo, arma-se um circo em torno do fato e, quando não há mais o que ser explorado, tenta-se descobrir outro fato polêmico, impactante e que renda boa repercussão. Isso é mostrado pelo autor do texto literário, no final da história, quando é reproduzida uma página de jornal impresso, com a seguinte legenda: “Última notícia sobre _____ publicada na imprensa – Folha de S. Paulo, 10/4/1993” (XAVIER, 2006, p. 57, grifo no original). A repercussão do fato foi meteórica, com duração de apenas dois dias. No entanto, quando a tragédia deixou de ser atrativa, ela deixou de ser veiculada, apesar de as investigações continuarem, como bem demonstra o título da notícia da Folha: “Polícia suspeita de mais um em morte no parque” (XAVIER, 2006, p. 57, grifo no original).
Ao informar, na legenda da reprodução da notícia, que se tratava da última publicação na imprensa sobre o caso e ao incluir isso, no final da história, o autor torna a sua narrativa inconclusa, assim como a morte da menina de rua. Dessa forma, o texto metaforiza um processo extremamente frequente em nosso dia a dia: quantas vezes nos indignamos com crimes hediondos informados pela mídia e não ficamos sabendo mais nada a respeito?
Neste novo texto sobre a obra de Valêncio Xavier, reafirmamos, portanto, o questionamento sobre o papel da imprensa e a importância da colagem, nas narrativas do autor. Valêncio se comporta como crítico e historiador (assim como o jornalista, que também pode ser considerado um historiador do cotidiano). Depois da seleção e da descontextualização próprias da colagem, cabe ao escritor reorganizar os elementos, para compor sua obra, que se efetiva como um cruzamento da ficção com diferentes versões da história oficial. A autoria é comprovada justamente pela particularidade da montagem feita pelo autor, totalmente subjetiva, afinal, “as representações do passado são selecionadas para significar tudo o que o historiador pretende” (HUTCHEON, 1991, p. 162). O escritor vira historiador e o historiador (dos livros de História e dos jornais) passa a ser autor. Dessa forma, a palavra se estabelece como elemento indissociável de criação, construção e ficção.