A leitura e o bem-estar da alma

Adalberto De Queiroz

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Em “A biblioteca à noite”, o argentino Alberto Manguel transcreve trecho de uma carta do cônsul romano Cícero que, por volta do ano 36 a.C., escrevia ao amigo Ático, sentado em seu estúdio à beira-mar em Antium.

Eu me divirto com os livros, dos quais tenho boa provisão em Antium, ou conto as ondas – o tempo não está bom para pescar cavalinhas. Ler e escrever não me trazem propriamente consolo, mas distração”.

Foi para exaltar as vantagens de se ter e poder se recolher a um estúdio (próximo à biblioteca), que o argentino inseriu este trecho antigo romano a certo ponto de seu belo livro.

Ele constata que escritores são uma “subespécie de leitores” que precisam se cercar de certos materiais para seu trabalho e precisam de um cantinho só seu, aposento que termina se transformando em uma espécie de “toca ou ninho, tomando a forma de seu corpo e oferecendo receptáculo para seus pensamentos”.

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Alberto Manguel em seu estúdio.

Hoje, minha intenção é diferente, ao pescar essa citação como mote para iniciar este artigo. Desejo situar-me para meus seis leitores (e primeiro para mim mesmo), como e onde me encontro em meio a esta pandemia.

Tendo tomado a decisão, minha mulher e eu, de nos isolarmos na costa da Bahia, por um tempo suficiente para ver avançar os índices de controle em nossa cidade, só retornando quando as autoridades divulgarem situação mais aceitável em Goiânia, eis-nos aqui.

Foi assim que a casinha de praia de Guarajuba, na Bahia, transformou-se na minha Antium sem estúdio.

Leio e escrevo na mesma mesa em que tomamos o café-da-manhã e o jantar, mas sempre no mesmo cantinho, que forjei como toca para mim. Com a chegada do meu neto, que veio passar dez dias conosco, este ninho teve que ser divido, assim como os horários, pois todos se submetem à rotina do garotinho de dois anos – o que nos faz rememorar o que passamos com as filhas há muitos anos atrás, isto é, saber que a casa vive em função da rotina dos bebês.

Manguel prova nessa seção do livro (8. Oficina) que é necessário ao escritor encontrar um canto, uma toca para se distrair “do ruído do mundo, um lugar para pensar” e mostra como os estúdios de escritores célebres são memoriais curiosos.

Os exemplos citados são das oficinas de Rudyard Kipling, em Rottingdean; de Erasmo na Basileia; de Friedrich Dürrenmatt, em Neuchâtel; de Victor Hugo, na Place de Vosges, em Paris; de Arno Schmidt em Bargfeld dei Celle, na Baixa Saxônia alemã; e de Miguel de Cervantes em Valladolid; juntam-se todos ao especialíssimo espaço de Jorge Luis Borges que o autor conheceu e com quem teve profícua amizade, relatada no livro e no opúsculo daí derivado (“Com Borges”).

Em todos esses espaços hoje antológicos para os que amam os escritores e seus livros, ou apenas amam a leitura, o que se busca é aquilo que Sêneca chamava de “euthymia”, termo grego que significa “o bem-estar da alma” e que, segundo Manguel, era traduzido pelo filósofo como “tranquilitas” – aspiração daqueles que nutrem intimidade com a leitura, e que se obtém num “período secreto do dia comunal” e “num espaço privado para a leitura”.

Na visita que fiz, em 2018, à casa-museu Herman Melville fiquei impressionado com o cantinho em que Melville escrevia em sua fazenda, em Pittsfield, Massachusetts. Num recanto paradisíaco, o autor de Moby Dick encontrou paz para produzir. A mesa do escritor ficava de frente para a janela, em forma de escotilha de um navio.

Vivendo no campo, mas com a imaginação sempre postada para o mar. Da janela de seu quarto de escrita (seu estúdio), Melville exercia sua poderosa imaginação de escritor tendo como paisagem os campos e o morro vizinho – “The Mount”, o mais alto pico (nem tão alto assim) naquela região de Massachusetts. No entanto, era o mar que enxergava.

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Herman Melville’s Arrowhead in Pittsfield, MA, USA.
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A lareira…

Melvile parece não estar no seu quarto, mas num navio, como tantas vezes estivera, antes de converter todas as emoções marinhas em romance canônico da literatura ocidental (“Moby Dick”):

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Foto de Adalberto na casa-museu Melville, Pittsfield

“Eu tenho um sentimento do mar, aqui no campo…meu quarto parece a cabine de um navio; e de noite quando acordo e ouço o vento assobiando na janela, minha fantasia me diz que há muitas velas na casa e que é melhor subir ao telhado e preparar a lareira” – escreveu Melville para o “Evert Duychinck”, de Arrowhead em dezembro de 1850.

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Nascido e criado no cerrado goiano, sinto nesta quadra da vida uma vocação marítima, de viver à beira-mar. Não é só a paisagem que me encanta.

O movimento dos ventos, às vezes assustadores à noite, as ondas, a cor da superfície marinha que parece submeter-se aos caprichos do sol, a observação dos hábitos dos seres marinhos e dos seres humanos que vivem à beira-mar, tudo me leva a crer que me adaptaria à vida neste canto do país, à beira-mar, apesar do humor movediço do tempo nesta época do ano.

Tenho à mão alguns livros trazidos na bagagem para este retiro na Bahia. Foram escolhidos atendendo ao critério de um viajante econômico, sob a limitação dos quilos do transporte aéreo.

Neste meu canto da casa de praia, abro sempre que posso o volume de estudo (“Sou o primeiro e o último”). Eis um livro magistral escrito por um profeta moderno – Mauricio Gonçalves Righi. Não poderia dizer, como Cícero, que neste caso a leitura seja distração. É, antes, contenção, concentração, quase disputa, mas apaziguadora naquele sentido que Sêneca atribuía a euthymia – que, ao fim e ao cabo, traz ao leitor bem-estar da alma.

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“Jovem Cícero Lendo”.
Afresco de 1464. Por Vincenzo Foppa, atualmente na Wallace Collection, em Londres

Junto ao livro de Maurício, duas leituras correlatas e tão exigentes quanto. “Dostoiévski: do duplo à unidade” e “A conversão da arte”; mais dois volumes de pura distração, que são uma espécie de détente para o intervalo dos embates com Girard e Righi: “Saudades dos cigarros que nunca fumarei”, de Gustavo Nogy; e “A humanidade é uma gorda dançando em um banquinho”, de Alexandre Soares Silva.

Mas não é o esforço deste repertório de leituras que desejo fazer aqui, senão que o balanço sentimental do estar à beira-mar.

Na crônica da quinzena passada, trouxe aos meus seis leitores um canto ao mar da safra poética do francês-antilhano, nascido na Guadalupe, batizado como Marie-René Alexis Léger-Léger, pseudônimo pelo qual ficou conhecido em todo o mundo – Saint-John Perse, ganhador do Prêmio Nobel de 1960.

Hoje, outro trecho me remeteu ao sentido que Cícero emprestou ao início desta crônica. Diz o poeta:

A roda do drama gira sobre a mó das Águas, moendo a violeta-negra e o heléboro nos sulcos ensanguentados da tarde.

E aí que a distração sai de fininho da crônica para dar lugar à reflexão trágica. O poeta fala da beleza que trai, que mata (a violeta-negra e o belo mas venenoso heléboro), fala dos “sulcos ensanguentados da tarde” numa dimensão outra que não a do cotidiano, mas aqui o cronista toma liberdades que só o texto publicado permite: usá-la para os fins de exame da realidade que a volta do mar nos revela, quando ligamos à internet – a crise sanitária da Covid-19.

Fugimos do centro em que palpitam os contatos diários e o acompanhamento sorrateiro das notícias em busca de uma “curva de mortes e infectados” que nos permita voltar à vida normal, mas o espectro que de fato ameaça é a morte – o mesmo que no fundo movia os versos de Perse.

No jornal francês Figaro, o sociólogo Michel Maffesoli argumenta que a pandemia do coronavírus abala a ideologia progressista das sociedades modernas e a sua pretensão de resolver tudo, incluindo esta presença ubíqua da morte que se tornou protagonista do noticiário.

A crise do Coronavírus assinala o grande retorno do trágico. São uma espécie assustadora daqueles “sulcos ensanguentados da tarde” do poema de Perse lidos nos trágicos números da pandemia.

“Esta morte onipresente lembra-nos na sua concretude que é uma ordem de coisas que estaria chegando ao fim.

A possível morte, uma ameaça diária, uma realidade que não pode ser negada, que já não podemos negar, a morte que somos inexoravelmente obrigados a explicar, onipresente lembra-nos na sua concretude que é uma ordem de coisas que está a chegar ao fim. O que é concreto, lembro-vos [no original em latim] é cum crescere, é o que “cresce com”, com uma realidade irrefutável.

E esta realidade é a morte desta “ordem de coisas” que constituía o mundo moderno. A morte do economicismo dominante, desta prevalência da infraestrutura econômica, causa e efeito de um materialismo míope.

Morte de uma concepção puramente individualista da existência. É claro que as elites fora de etapa continuam a fazer “tomar em consideração o individualismo contemporâneo” e outros disparates do mesmo tipo.

Mas a angústia da finitude, uma finitude cuja realidade já não pode ser escondida, encoraja, pelo contrário, uma procura de ajuda mútua, partilha, intercâmbio, trabalho voluntário e outros valores do mesmo tipo que o materialismo moderno pensava ter ultrapassado.

Ainda mais flagrante, a crise sanitária assinala a morte da globalização, o valor dominante de uma elite obcecada por um mercado sem limites, sem fronteiras, onde, mais uma vez, o objeto prevalece sobre o sujeito, o material sobre o espiritual.”
[…]
É assim que a crise sanitária que traz a morte individual é um indicativo de uma crise civilizacional, a morte de um paradigma progressivo que tem corrido o seu curso. Talvez seja isto que torna a tragédia “sanitária”, vivida diariamente, longe de ser morosa, consciente de que se trata de uma ressurreição em progresso; indicativo de que no “ser-junto”, no “ser – com”, no visível social, o invisível espiritual ocupará um lugar de destaque.”

Silenciosamente, faço da última frase a minha prece diária e diante do mar carrego meu livrinho, com um olho no destino e outro no mar e seu jade infinito, em busca do bem-estar da alma. Constato como Cícero que o mar não está bom para pescar cavalinhas.


Mais leitura: Eros e Tanatos: um artigo (satírico?)

2 comentários em “A leitura e o bem-estar da alma”

  1. Obrigada pelo envio!
    Amei saber sobre as particularidades do autor de Moby Dick.
    Também gosto muito de ler e escrever – embora, por incrível que pareça, apesar da pandemia, não tenho tido muito tempo nem para um, nem para outro.
    De verdade, acho que quem mais nos ameaça, nunca é a morte, e sim a vida. A morte só leva aquilo que a vida trouxe e não pode manter.
    Gostei muito da leitura!
    Abraços, boa semana.

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  2. Olá, ANA: fico muito feliz que tenha gostado.
    Desejo muita vida pra você, com leituras e, por que não, escritas.
    Abraço fraterno do Beto.

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