Cultura literária medieval (2)

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Os poucos (e valorosos) leitores que me seguem sabem que iniciei este ano de 2021 aqui na Recorte Lírico, propondo que fizessem comigo uma viagem à Idade Média – especificamente à cultura literária do período, sob a batuta de um mestre dos estudos medievais no Brasil, o professor Segismundo Spina.

Não é sobejo recordar o porquê deste velho escriba ter, há muito tempo, lançado um olhar atento para a literatura medieval – porque para repetir o título memorável de Régine Pernoud – há muita coisa que deixaram de nos ensinar, ou nos foi escondida sobre este período histórico. E se hoje recordo isso, da forma mais simples e didática, é com a consciência de quem prestasse um serviço (ao) público.

Este artigo declara-se como matéria de oposição à desinformação que faz comum e aceitável que jovens bem formados ainda considerem a Idade Média como uma época de atraso e que não mereça sequer ser estudada a fundo [PERNOUD, 2016[i]] e alguns destes mesmos universitários possam considerar um documento escrito na Mesopotâmia, no distante ano 2100 a.C. como literatura da idade Média.

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De modo geral, o universitário consciente tem certa incapacidade física para ver o que não está de acordo com as noções que seu cérebro conservou.
[…]
Idade Média significa sempre [para estes filhos da modernidade]: época de ignorância, de brutalidade, de subdesenvolvimento generalizado, embora seja a única época de subdesenvolvimento durante a qual se construíram catedrais!

É preciso, pois, expor o mal que foi feito pelos iluministas e os modernistas, a má-fé e a difamação sistemática que alguns ainda insistem em fazer em relação à Idade Média – essa fase importante da evolução do gênero humano. É preciso combater as infâmias e os comentários deletérios feitos em relação ao Medievalismo (CARPEAUX, 1999[ii]). Comecemos, pois, encontrando a gênese do processo que amaldiçoou este período:

“A ideia antimedieval já havia encontrado uma expressão muito mais forte na retórica dos revolucionários de 1789 [na França] e dos Convencionais.
Enfim, a ideia antimedieval tornou-se a sua origem: a retórica.
A Revolução Francesa é a última consequência da concepção de uma “Idade Média obscura”.

A revisão histórica deste erro e a reação política são a mesma coisa. O Romantismo é contrarrevolucionário e ao mesmo tempo medievalista. (…)
A concepção Idade Média em sentido pejorativo coincide com o advento do espírito utilitário e dos dogmas barrocos contra a velha Universidade [que é uma criação da Idade Média!], ao mesmo tempo que a ciência se nacionaliza pela perda da língua internacional – o Latim.
[…]      

Ao recorrer a mestres como Carpeaux e Spina, escolhidos para iniciar esta série de textos, o colunista o faz ciente de que é preciso encontrar guias seguros para entender a Idade Média. Spina nos habilita a “seguir o caminho de aventura e encantamento” que é seguir as trilhas da Idade Média, certos de que estamos sendo guiados por mestre seguro para o destino ora traçado. Carpeaux abaliza as discussões perdidas entre progressistas e antiprogressistas.

O que se inscreve neste período, que esquematicamente pode-se datar como do século V ao XI (Alta Idade Média) e do XI ao XV (Baixa Idade Média) [SPINA, 1997[iii]] – o que, como se sabe, é apenas uma referência didática, uma espécie de fatiamento da História que deixa entrever características próprias. Nesse sentido, vale aqui ecoar Spina (perdoe o leitor uma tão longa citação, mas importante demais) para entendermos de que literatura estamos falando:

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Em linhas gerais, podemos aventurar algumas afirmações: a literatura que decorre do fim da Antiguidade Clássica até meados do século XI (das invasões bárbaras até às vésperas da primeira Cruzada religiosa) difere, nas formas e, no espírito, da produção literária posterior (séculos XII-XV). A Alta Idade Média – expressão com que designamos aquele primeiro período – encontra-se dominada por uma literatura de tipo monástico, que, até certo ponto, pode ser reduzida a narrativas hagiográficas e a poemas litúrgicos, cuja forma fundamental é representada pelos hinos. As dificuldades materiais da produção literária (os processos do pergaminho etc.) tornaram impraticável a formação de movimentos literários, o que explica o fato de ser a literatura da época eminentemente oral. A produção escrita, privilégio dos mosteiros, compreendia formas de expressão que foram, em grande parte, superadas e substituídas depois do século XI: uma literatura especulativa, historiográfica (biografias e anais), hagiográfica e predicatória formava o conjunto dos gêneros históricos pelo seu caráter objetivo; as formas subjetivas estavam representadas por uma literatura de semificção, que conseguiu chegar até ao século XVI: as tragediae, as comediae (sem o significado dramático-teatral, pois designavam obras narrativas), as satirae e a elegiae. Dentre as subformas – a égloga alegórica, o epigrama, o enigma, a consolação, o bilhete de adeus ou de saudação, o epitáfio, a dedicatória –, apenas releva lembrar o planctus (normalmente lamento pela morte de um chefe), de tradição na Antiguidade e assimilado pela literatura vulgar no século XII. Das formas mais duradouras no decurso da Alta Idade Média – o panegírico, a epístola (em prosa ou verso), o itinerário (narrativas de viagem) –, apenas a epístola poética apresenta interesse, do ponto de vista genético, para o estudo da lírica dos séculos trovadorescos. A produção oral, em geral condenada pela Igreja, compreendia as fabulae (contos), as canções amorosas (cantica amatória), os cantos blasfematórios, de luto (supermortuos) e os histriônicos (spetacula, joca, scenica).

Spina aventura-se a dizer que o renascimento carolíngio (século VIII) não chegou a criar formas literárias. Para ele, “as formas literárias em voga nesse período – os carmina figurata (poemas cujos versos ou letras formavam desenhos figurativos) e as altercationes (contestações entre personagens reais ou fictícias) – não tiveram consequências na literatura posterior” (SPINA, 1997, p. 17).

Não é este o pensamento de Carpeaux sobre o período carolíngio. No capítulo intitulado “A literatura dos castelos e das aldeias”, em sua História da Literatura Ocidental[iv], o mestre austro-brasileiro começa dizendo que “a origem do lirismo medieval é um dos grandes problemas da historiografia literária”. Ao que se segue uma aula de como todo o quadro foi se compondo, da Escócia à península ibérica, dos celtas aos franceses, tudo parecendo compor uma imperdível fase de poesia popular.

A poesia provençal deixou no espírito europeu uma marca profunda…O fato decisivo é, pois, a “provençalização” dos assuntos. É ela que transforma a “geste de Charlemagne” [canções de gesta do período carolíngio] em série de aventuras fantásticas de cavaleiros andantes, mais preocupados com as damas do que com os infiéis. Muito semelhante é a transformação da matéria céltica: a rainha Guinevere e as aventuras de Lancelot são postas em evidência, e o romance de Tristão com Isolda torna-se popularíssimo. Questões de amor impõem-se a propósito da guerra de Tróia, e a história de Enéias e Dido é inteiramente “provençalizada”.
“Contudo, existem influências subsidiárias: Ovídio é o autor latino mais lido nas escolas do século XII, e uma obscura literatura ovidiana de segunda mão e segunda ordem contribui para o requintamento das maneiras e para a complicação da psicologia amorosa.
“O produto típico [dessa época] é o “roman courtois”, de Chrétien de Troyes (1130-1180).

Entre os êxitos de Troyes, Carpeaux cita a série de romances de amor, baseados na lenda arturiana, de Lancelot e Guinevere, de Erec e Enide, Perceval e Yvain. Também dessa vertente, recuperamos em artigo anterior aquele que se tornou “o mais erudito” do período, ou como Carpeaux prefere: “o mais formalístico” – Arnaut Daniel (1180-1220), poeta a quem Dante eternizou na Divina Comédia (“Purgatório, Canto XXVI, 117[v]):

“O frate, disse, “questi ch´io ti cerno
col dito”, e additò um spirto innazi,
“fu miglior fabbro del parler materno.”

(“Ora, disse ele, “este que aponto, ó irmão”,
e indicou-me um espírito à sua frente,
“da língua pátria foi mor artesão”).

[…]

Ao que fora indicado a me chegar,
eu disse que ao seu nome ia distinguir,
o meu desejo, um distinto lugar.

E ele, com graça, a acatar e pedir:
“Tan m´abellis vostre cortes deman,
qu´ieu no me puese ni voill a vos cobrire,

Ieu sui Arnaut, que plor e vau cantan;
consiros vei la passada folor,
e vei jausen lo jorn qu´esper, denan.

Ara vos prec, per aquela valor
que vos guida al som de l´escalina,
sovenha vos a temps de ma dolor!”

E se escondeu no fogo que os afina.

Foi por isso que na abordagem pretendida de uma síntese da cultura literária, pela limitação de espaço que a crônica quinzenal se nos oferece, selecionei amostras – no caso do primeiro artigo, escolhendo o mesmo poeta que Dante cita nos versos acima – Arnaut Daniel (1180-1210), na tradução poética feita por Augusto de Campos, em seu já clássico livro “Mais provençais” (ver link).

Chegou a vez de me referir ao texto famoso “Tristão e Isolda” (Tristan et Iseut). Como se sabe, a lenda de Tristão e Isolda se passa na Bretanha francesa, em meados do século XII. Inspirada num conto de amor e de morte escrito por um certo Mestre Thomas tem um enredo bem conhecido e até hoje apreciado.

O enredo é simples: Tristão vai buscar na Irlanda uma noiva para seu tio o rei Marc – rei da Cornualha e, no navio que conduz os jovens Tristão e Isolda, estes bebem por acaso um vinho fortificado (vin herbé) que era na verdade um “filtro” destinado aos futuros esposos e que deveria assegurar o amor eterno.

Esta poção do amor, que é uma forma mítica de bebida em geral elaborada por feiticeiros, seria capaz de provocar em alguém os sentimentos amorosos em relação a outrem; e, então, é assim que os personagens Tristão e Isolda se vêm ligados um ao outro numa espécie de ligação eterna que se revela ao longo do romance mais forte que as leis humanas e até mais forte que as leis divinas.

A história de Tristão e Isolda conquista a simpatia dos leitores até hoje muito por conta de se tratar de heróis jovens, apaixonados e cuja história de amor contraria a moral tradicional e as regras sociais; e, embora humanamente acabada, vê-se coroada, santificada por uma morte dupla e o sucesso do livro se deve assim à perenidade da lenda: o casal afirma com sua ação o direito à felicidade, ao amor, acima das convenções, das conveniências e até das leis humanas. O apelo continua enorme até para os leitores de versões atualizadas do romance – como a do filólogo e professor de literatura francesa da Idade Média Joseph Bédier[vi] (1884-1938):

“Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e morte? É de Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em grande aflição eles se amaram, depois morreram no mesmo dia, ele por ela, ela por ele. Em tempos passados, o rei Marc reinava nas Cornualhas…”. “Tenho o prazer de apresentar aos leitores o mais recente dentre os poemas que a admirável lenda de Tristão e Isolda fez nascer. Na verdade, é um poema, embora seja escrito numa prosa bela e simples. Joseph Bédier é o digno continuador daqueles que tentaram verter, no leve cristal da nossa língua, o néctar embriagador pelo qual os amantes das Cornualhas outrora saborearam o amor e a morte”
(Gaston Paris, no prefácio à edição em português).

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Trechos dos 4500 versos da obra são analisados por Bianciotto neste Manual da Larrousse para alunos de Francês

O drama dos amantes desta história finca raízes antigas e obscuras em lendas populares celtas (aliás, o nome do herói – Tristão seria corruptela do nome celta Drustan), mas tornou-se, segundo Gabriel Bianciotto[vii], um tema europeu. Os primeiros a colocarem a lenda em forma romanesca foram o Mestre Thomas e o franco-normando Béroul, em meados do século XII. Desde então, apareceram diversas outras versões em alemão, inglês, italiano, dinamarquês, e tcheco, sempre como traduções em primeiro ou segundo grau (ou imitações) dos modelos de Thomas ou Béroul – um calhamaço de 4500 ou 3000 versos, alguns ilegíveis até por especialistas (BIANCIOTTO, 1974).


Em 1865, o compositor alemão Richard Wagner estreou uma ópera com o mesmo título, mas que não é fiel ao espírito medieval do texto, porque o compositor andava por demais influenciado pelas ideias de Arthur Schopenhauer (1788–1860). De qualquer forma, é mais um exemplo de um romântico que se apaixonou pelas lendas medievais. A ópera completa pode ser apreciada pelo YouTube – ver link consultado em 10/02/2021

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Ilustração para libreto da ópera de Wagner (s/data), via Wikipedia

Das adaptações modernas da lenda, destaca-se a de Joseph Bédier que reconstituiu com os conhecimento de filólogo a escrita de um poeta medieval e de forma fiel ao espírito do mito, graças à sua formação em literatura medieval; e no cinema, outro francês – Jean Cocteau nos legou a sua versão em “O eterno retorno” (1943), tendo nos papeis principais Jean Marais e Madeleine Sologne.

As traduções que encontrei em português não reproduzem o texto em forma de poema, mas de prosa. Já o livreto com que o jovem cronista trabalhou na época de formação na Aliança Francesa de Goiânia está em versos (e, naturalmente, não terei a ousadia de traduzir sequer um trecho). Recomendo, pois, que os interessados na aventura do jovem casal, leiam a versão em prosa da Editora Francisco Alves (1988), tradução de Maria do Anjo Braamcamp Figueiredo. Por ora, é o que tenho pra você, benévolo leitor, e quem sabe, voltarei a trilhar os caminhos da Idade Média em busca da sua rica cultura literária.

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Referências do artigo “Cultura literária medieval (2)”

[i] PERNOUD, Régine. “Idade Média: o que não nos ensinaram”. Tradução Maurício Bret de Menezes. São Paulo: Linotipo Digital, 2016. Prefácio de Ricardo da Costa.

[ii] CARPEAUX, Otto Maria. “Ensaios Reunidos 1942-1978”. Organização, introdução e notas de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks/UniverCidade, 1999, pág. 205-10.

[iii] SPINA, Segismundo. “A cultura literária medieval: uma introdução”. São Caetano do Sul (SP): Ateliê Editorial, 1997.

[iv] CARPEAUX, Otto Maria. “História da literatura Ocidental” – vol. I, 2ª. ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, pág. 164-181.

[v] ALIGHIERI, Dante. “A Divina comédia: purgatório”. Tradução e notas de Ítalo Eugênio Mauro. – S. Paulo: Editora 34, 1998, pág. 173-4.

[vi] BÉDIER, Joseph (1864-1938).”O romance de Tristão e Isolda”; tradução de Luis Claudio de Castro e Costa; revisão da tradução de Monica Stahel – 5ª. ed.- São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

[vii] BIANCIOTTO, Gabriel. “Les poèmes de Tristan et Iseut : Classiques Larousse » Paris : Librairie Larrousse, 1974, 186 pág.

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