O que sobra da gente quando o que fazemos de melhor é copiar o gesto do outro?
Pascal/Montaigne
A verdadeira aposta
Voltava sozinho para casa depois de mais um triste dia. A capa arrastando na lama, cansado, muito cansado. A máscara começava a se descolar da face. Dava muito trabalho, todos os dias, aferrá-la ao rosto e repetir, quase que mecanicamente, as famosas frases “de espírito” que já o haviam tornado famoso e admirado entre os jansenistas, em Port-Royal-des-Champs:
“Pode-se ter saudades dos tempos bons, mas não se deve fugir ao presente”.
“Abandonar a vida por um sonho é estimá-la exatamente por quanto ela vale”.
“O homem não é tão ferido pelo que acontece, e sim por sua opinião sobre o que acontece”.
“Proibir algo é despertar o desejo”.
E repetia e repetia. A matemática é o único lugar que Deus permitiu que a repetição fosse verdadeira. Fora dela, a repetição é apenas desconhecimento de si, e a imaginação cria ilusões para disfarçar o infinito inalcançável que torna tudo cópia ínfima. Por isso, usava o outro, as frases do outro, para reconhecer um pouco de si, para se amar menos, esquecer o enganoso eu. É a marca primeva do pecado original dar amor infinito a algo que vai morrer.
Parou à porta, esperando que a irmã abrisse. Ao lado da casa, crianças brincavam. Reconheceu, nessa brincadeira, a imagem de um aforismo de um autor grego menor. Sorriu, sem a máscara, pela primeira vez, depois de muito tempo.
“Não há Cristo que salve os gregos. Não tinha como eles ganharem a aposta!”
A porta aberta – entrou para a casa escura.