[CONTO] Sobre Caixas e Homo Sapiens

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Admito que estou obcecado com a observação analítica de um notável grupo de primatas autodenominados Homo Sapiens – na língua deles, o homem que sabe (já aí se nota sua presunção). Nas próximas linhas hei de fazer breve e incompleta introdução à engenhosidade, ingenuidade e absurdo desta espécie.

Devemos recordar que o tipo referido passou por uma existência curta de milhões de anos, e seus costumes e hábitos mudam de acordo com a temporalidade. Discorro aqui sobre o tempo chamado pelos humanos de contemporâneo ou pós-moderno, aproximadamente 2017 anos após a morte de um notável sujeito da espécie que se proclamava filho de um ser superior.

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Para facilitar nossa tarefa, observamos, durante um período de rotação de seu planeta, um membro específico da espécie, João. João vive em uma comunidade de humanos, com alta densidade. Estas são referidas por ‘cidades’. O Homo Sapiens tem habilidade incrível de aglomeração, chegando até 500, 600 indivíduos em um pequeno espaço, e, para tal, recorre a empilhamentos verticais de caixas de material resistente, formando assim estruturas altas divididas internamente em cubículos – Prédios. Descrever cada mecanismo presente no prédio em que João mora demoraria não só horas, como dias, portanto, pelo bem daquele que escreve e daquele que lê, pulemos essa parte, afirmando apenas que há neste prédio sistemas responsáveis pela higiene, locomoção, entretenimento, alimentação e etc.

Um dos elementos notáveis neste prédio é uma caixa de metal paralelepipedal, que içada por cabos de aço e com engenhoso sistema de contrapeso, sobre e desce os andares conforme a vontade dos habitantes, o elevador. Eventualmente, João desce seus dezesseis andares empilhados, utilizando do elevador e acaba por entrar em outra caixa de metal, agora com rodas de borracha.

Essa caixa sai do lugar com explosão de combustível fóssil refinado, atingindo a velocidades incríveis de até duzentos quilômetros por hora, que nem mesmo o mais rápido dos animais daquele planetinha pode manter por muito tempo. (Seria necessário muito tempo para descrever também todos os sistemas presentes nessa caixa com rodas – o Carro, portanto pulemos novamente essa parte;).

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João manobra o carro então por Estradas (longas extensões de terra planificada e pavimentada que normalmente levam a algum lugar), até que se encontre em outro Prédio, onde Trabalha.

Desejo você que imagine que ao mesmo tempo em que João faz isso, existem milhões, sim, milhões, de outros Homo Sapiens fazendo atividades muito similares as dele em um raio de cem quilômetros. Como não se batem, se chocam, enlouquecem, não descobri ainda. Imagino que esses seres enigmáticos tenham algo como um sistema de organização parecido com o de colônias de formigas, cupins e abelhas, como um tipo de inteligência coletiva que os levam a algum caminho comum e os guiam em tarefas diárias. Devo dizer, contanto, que é pura especulação e ainda não posso provar essa hipótese.

Voltando a João agora, dizia eu que ele chegou ao lugar onde Trabalha. Trabalhar, nas sociedades humanas é uma característica universal e muito difícil de explicar em sua inteira complexidade.

Compreende o leitor que eu havia há pouco descrito diversos sistemas que estes primatas utilizam para, de forma geral, facilitar sua vida. A produção de tais sistemas e bens é algo muito difícil de ser feito de maneira independente – a lata de metal com rodas, por exemplo, têm rodas feitas com a borracha de árvores localizadas em ilhas ao sudeste da maior porção de terra do planetinha que estes habitam (chamado por eles de Terra, que se pode traduzir literalmente como chão, ou sujeira), e os Homo Sapiens que vivem lá têm como trabalho extrair essa borracha. Os primatas, então, colocam toneladas de borracha em outra caixa de metal, agora uma que flutua (Barcos), para cruzar oceanos em direção aos mais diversos lugares. Homens que manejam essas caixas de metais flutuantes estão trabalhando ao fazer isso. Mas João, ao manejar seu Carro, não está trabalhando. (Ainda não entendi o por quê, estou trabalhando nisso).

João chega então ao Prédio onde Trabalha, estaciona sua caixa de metal em um pequeno espaço retangular delimitado no subterrâneo desse Prédio, e iça-se novamente através da outra caixa de metal chamada de Elevador (não confundir com Carro) para o vigésimo sétimo andar, onde está sediada sua Empresa. Empresa, aqui, é definida como um grupo de Homo Sapiens reunidos, que Trabalham para atingir fim específico e determinado – poderia, por exemplo, ser esse fim extrair borracha das árvores como foi dito anteriormente; no caso de João, ele trabalha em uma Empresa que produz Canetas (objetos em formato de bastão diminuído que com os quais os humanos deixam rastros de tinta que representam símbolos em superfícies, esses símbolos consistindo no mecanismo de escrita desses seres.)

Ao chegar em seu trabalho, João senta-se em uma cadeira em sua caixinha-cubículo, outro pequeno espaço quadrado delimitado para que se possa trabalhar; aperta, em outra caixa de metal, o botão de ligar – seu computador, e passa o dia a fazer cálculos rudimentares olhando para mais uma estrutura em forma de retângulo chamada monitor (pense aqui o leitor que um computador é uma máquina com pequeníssima capacidade de processamento de dados, e que o monitor é apenas um dispositivo de saída visual do Computador).

O leitor já deve ter percebido aqui que esses humanos têm, por algum motivo, fortes tendências a organizar sua vida em retângulos, quadrados e cubos e caixas: seu senso de estética sempre os leva a construir estruturas e objetos que tenham quatro ângulos internos de 90 graus.

João fica sentado pelas próximas 3 horas em frente ao computador, oscilando entre trabalho e procrastinação (os humanos não têm capacidade de concentração notável. Encontramos, sem dúvidas, diversas espécies de Peixe (leia “A vida e a Morte dos Peixes” para maiores informações – que poderiam os superar nesse aspecto.), e se reúne com os outros humanos que trabalham em sua mesma empresa para Almoçar (ato de comer, normalmente em grupos, durante a primeira metade do período de rotação da Terra), em um Restaurante (um lugar onde alguns humanos trabalham em uma empresa cuja finalidade é produzir alimentação, e outros humanos vão para consumir essa alimentação). João e seu grupo engolem sua comida rapidamente e logo sobe para continuar a trabalhar na produção de canetas por sua empresa pelas próximas 5 horas.

Após o fim deste período, João, através do elevador, desce até o subterrâneo, onde parou seu carro naquele pequeno espaço delimitado, e faz o caminho inverso que havia feito pela manhã, até sua casa.

Chegando lá, senta-se na confortável caixa chamada de sofá, e assiste, em outra caixinha, bastante similar a um monitor, à televisão (dispositivo eletrônico que reproduz imagens e som, normalmente a partir de ondas eletromagnéticas transmitidas de outra localidade). João tem acesso a mais de 130 canais (programações de imagem e som) diferentes, e fica bastante entretido com isso, assistindo outros humanos que trabalham com intuito de produzir entretenimento até seu horário de dormir, com uma pequena pausa para se alimentar. Assuma o leitor que repetirá quase identicamente o processo no próximo período de rotação do planeta.

A pergunta que sei que o leitor quer fazer agora: Se ocupam esses seres de alguma significância maior, de algo além, do extraordinário, do ócio? Raras vezes. Normalmente o fazem de maneira enviesada por suas próprias limitações; oferecem soluções incompletas, incoerentes.

Eles nascem, e são postos em uma caixa. Eles vivem em uma caixa. Eles vão para o trabalho em caixas, e eles trabalham em caixas, onde sentam em suas pequenas caixinhas-cubículo, dizendo que estão pensando “fora da caixa”; e quando morrem, são postos e enterrados dentro de uma caixa. Todas caixas, geometricamente perfeitas. Todos os quatro ângulos de 90 graus. ¹

 

¹ – The Bed of Procrustes: Philosophical and Practical Aphorisms.

 

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