O que sobra da gente quando o que fazemos de melhor é copiar o gesto do outro?

Pascal/Montaigne

A verdadeira aposta

Voltava sozinho para casa depois de mais um triste dia. A capa arrastando na lama, cansado, muito cansado. A máscara começava a se descolar da face. Dava muito trabalho, todos os dias, aferrá-la ao rosto e repetir, quase que mecanicamente, as famosas frases “de espírito” que já o haviam tornado famoso e admirado entre os jansenistas, em Port-Royal-des-Champs:

“Pode-se ter saudades dos tempos bons, mas não se deve fugir ao presente”.

“Abandonar a vida por um sonho é estimá-la exatamente por quanto ela vale”.

“O homem não é tão ferido pelo que acontece, e sim por sua opinião sobre o que acontece”.

“Proibir algo é despertar o desejo”.
O que sobra da gente quando o que fazemos de melhor é copiar o gesto do outro?
Cópia da pintura de François II Quesnel, que foi feita para Gérard Edelinck em 1691[réf. nécessaire]. – Obra do próprio

E repetia e repetia. A matemática é o único lugar que Deus permitiu que a repetição fosse verdadeira. Fora dela, a repetição é apenas desconhecimento de si, e a imaginação cria ilusões para disfarçar o infinito inalcançável que torna tudo cópia ínfima. Por isso, usava o outro, as frases do outro, para reconhecer um pouco de si, para se amar menos, esquecer o enganoso eu. É a marca primeva do pecado original dar amor infinito a algo que vai morrer.

Parou à porta, esperando que a irmã abrisse. Ao lado da casa, crianças brincavam. Reconheceu, nessa brincadeira, a imagem de um aforismo de um autor grego menor. Sorriu, sem a máscara, pela primeira vez, depois de muito tempo.

“Não há Cristo que salve os gregos. Não tinha como eles ganharem a aposta!”

A porta aberta – entrou para a casa escura.


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