Adélia Prado: Repensando o ser-mulher
A questão de gênero, que deve ser abordada no âmbito relacional, abrange o conceito de alteridade, já que os “gendramentos” acontecem para atender a uma expectativa que opõe masculino e feminino, a partir de determinados comportamentos. Sônia Missagia de Matos, em seu artigo “Repensando o gênero”, faz referência à teoria de Marilyn Strathern, que associa a alteridade à ativação da sexualidade:
Para uma pessoa encontrar outra do “sexo oposto” significa que o próprio gênero dele ou dela toma uma forma singular. Nessa condição uma pessoa elicita na outra uma forma sexual correspondente. Assim ele é totalmente masculino (all male), ou ela é totalmente feminina (all female) em relação a aquele outro. (MATOS, 1999, p. 51-52, grifo no original)
Porém, quando não há tal ativação, segundo a autora, predomina o estado denominado “cross-sex” (MATOS, 1999, p. 53), que prevê, no mesmo indivíduo, características atribuídas, convencionalmente, ao masculino e ao feminino. Essa relação com o outro é uma das tônicas da produção poética de Adélia Prado. Os poemas que trabalham a relação homem/mulher, no que se refere à sexualidade, são responsáveis, de certa forma, por perpetuar os perfis “gendrados” pela sociedade. A diferença explicitada por Strathern pode ser encontrada em fragmentos de Solte os cachorros, de Adélia Prado: “‘Deus fez o homem e o fez macho e fêmea’ e isto quer dizer que somos iguaizinhos no valor. A boa diferença é só pra obrigação e amenidades […]” (PRADO, 1979, p. 77-78, grifo no original). No poema “A maçã no escuro”, a escritora mineira apresenta um eu lírico livre das amarras sociais, capaz de descobrir a sexualidade e de se bastar, trazendo à tona a masturbação feminina, um tabu a ser transposto:
Meu sexo, de modo doce,
turgindo-se em sapiência
pleno de si, mas com fome,
em forte poder contendo-se,
iluminando sem chama a minha bacia andrógina.
Eu era muito pequena,
uma menina-crisálida. (PRADO, 1991, p. 182)
O fragmento acima transgride várias regras, já que, além do prazer solitário, acentuado pela expressão “bacia andrógina”, fala da descoberta da sexualidade e da obtenção do prazer, o que, até bem pouco tempo atrás, não era um privilégio das mulheres, no casamento. A sexualidade tinha como única finalidade a procriação, jamais a satisfação de um desejo físico, carnal. A historiadora Mary Del Priore, em entrevista à revista Época, revela detalhes importantes da vida sexual das mulheres, desde a época do Brasil Colônia, como, por exemplo:
[…] a mulher casada não podia se olhar no espelho, e tomava banho vestida, com um paninho na mão, para não ter contato com o corpo. […] era inconcebível que uma mulher pudesse ter prazer sem o homem. Também era proibido dormir de bruços, para não ter desejos à noite. (DEL PRIORE, 2005, p. 58)
Além desses dados, é universalmente conhecida a divisão, que vigorava ainda no século XX, entre as mulheres que “davam prazer” e aquelas “para casar”, o que reforça a repressão da sexualidade feminina.
A posição oscilante entre dois estereótipos femininos, a mulher submissa e a amante, pode ser considerada reflexo do caráter dual e inerente à revisão dos estereótipos do gênero em questão: “Aliada de seu desejo e sem o controle de seu corpo, a mulher aparece como objeto erótico do prazer masculino, perpetuada e aprisionada em papéis dicotômicos de amante submissa ou de perigosa devoradora de homens” (FUNCK, 2002, p. 47). No entanto, a faceta de “devoradora de homens” parece representar um caminho para a libertação, ao mesmo tempo em que, reagindo ao papel de mãe e mulher submissa, a mulher sente-se falida, já que, de algum modo, a situação que lhe foi atribuída pela sociedade garante a ela um relativo poder. Isso ocorre porque a maioria das mulheres foi criada para corresponder a diversos papéis que tentam assegurar a organização da casa e o bem-estar dos filhos e do marido, como demonstram estes fragmentos, de um guia da década de 1950, que ensinava as mulheres como ser uma boa mãe e uma esposa perfeita: “Seu objetivo: certificar-se de que sua casa é um lugar de paz, ordem e tranquilidade, onde seu marido pode se renovar em corpo e espírito” (COSTA, 2016); “Dedique alguns minutos para lavar as mãos e os rostos das crianças (se eles forem pequenos), pentear os cabelos e, se necessário, trocar de roupa. As crianças são pequenos tesouros e ele gostaria de vê-los assim” (COSTA, 2016).
Reagindo parcialmente a isso e instalando a inconstância, em alguns poemas, como em “Casamento”, por exemplo, Adélia Prado, por meio do eu lírico, apresenta a busca da mulher pelo prazer, desconstruindo o mito que dissociava mulher e satisfação sexual: “[…]. A qualquer hora da noite me levanto,/ ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. / É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, / de vez em quando os cotovelos se esbarram, […]” (PRADO, 1991, p. 252). Nesses versos, a personagem da mulher apresenta submissão ao afirmar que acorda durante a noite, “a qualquer hora”, para ajudar o marido a limpar os peixes. Entretanto, existe algo a mais em seu gesto: uma intenção de romantismo/erotismo que ela deixa transparecer quando menciona o esbarrar de cotovelos, que os aproxima física e sensualmente em uma situação que é praticamente avessa a esse enlevo que a mulher sente, a cada volta de pescaria. Nesse sentido, ao se enfatizar a relação entre sexo, desejo e corpo, estabelece-se, conforme Susana Funck (2002), uma associação com o terreno dominado pelo masculino. E o objetivo disso, claro, é a resposta reativa ao esquema tradicional/patriarcal: “[…] são estes momentos de ruptura das fronteiras da representação que podem produzir novas formas de consciência e ampliar os limites do possível” (FUNCK, 2002, p. 50).
Apesar de serem nítidas a predominância do masculino e certa submissão do gênero feminino em relação ao desejo do homem, em textos como o mencionado acima, em outras ocasiões reforça-se justamente o oposto. Em “A maçã no escuro”, de Adélia Prado, pode-se aplicar o pensamento de Catherine MacKinnon, citado por Jane Flax: “Socialização de gênero é o processo através do qual as mulheres passam a se identificar como seres sexuais, como seres que existem para os homens” (FLAX, 1992, p. 244). Tal pensamento, embora seja considerado redutor, por Jane Flax, traduz bem a necessidade do masculino, reconfigurando, então, a relação de dependência.
Adélia Prado, ao comentar sobre o corpo feminino, aproveita para analisar, ainda que brevemente, o papel da mulher na sociedade, atribuindo isso ao corpo feminino, capaz de procriar:
É o próprio corpo da mulher a sede da contradição básica de sua condição. A natureza colocou nesse corpo a função biológica de reprodução […]. Tal ato colocaria a mulher numa situação de grande poder, mas uma vez que a referida função está a serviço da humanidade, esta se apropria desse poder, atribuindo á mulher a posição de subordinada. (FRANCESCHI, 2000, p. 118)
Essa colocação abriu caminho a uma terceira conotação para o corpo, já que, além de simples objeto de prazer, ele significa também uma espécie de porta de entrada para a sexualidade e, como afirmou Adélia, um instrumento de escravização, como se a condição de procriar obrigasse a mulher a ser mãe, apenas porque, biologicamente, foi predestinada a isso.
REFERÊNCIAS
COSTA, L. Este guia de 1950 dá 18 dicas para mulheres serem “boas esposas”. Disponível em: <http://awebic.com/cultura/guia-boa-esposa-1950/>. Acesso em: 17 jun. 2016.
DEL PRIORE, M. 500 anos de amor. Revista Época, p. 52, 12 dez. 2005. FLAX, J. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, H. B. de (Org.). Pós-modernismo e política.Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 217-250.
FRANCESCHI, A. F. de. (Org.). Cadernos de literatura brasileira n. 9. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000.
FUNCK, S. B. Descolonizando a sexualidade feminina: as marionetes e as vampiras de Angela Carter. In:
MATOS, S. M. “Repensando o gênero”. In: AUAD, S. V. (Org.). Mulher: Cinco séculos de desenvolvimento na América — Capítulo Brasil. Belo Horizonte: O Lutador, 1999. p. 19-57.
PRADO, A. Poesia reunida.São Paulo: Siciliano, 1991. _____. Solte os cachorros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
Parte do artigo intitulado “Revisão dos estereótipos do gênero feminino nos textos de Adélia Prado”, publicado na revista Todas as Letras, n. 3, v. 18, 2016.