Análise comparativa: canções da inocência no holocausto
“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
(…)”
É, todos têm um pouco de saudades da infância, afinal, é uma época da vida em que tudo é fácil e em que somos inocentes, ainda não tocados pela frialdade da experiência de viver a vida adulta. Na infância tudo é sonho, fantasia, diversão. Em “Canções da inocência e experiência” William Blake traz uma contradição de bom e mau, puro e impuro. Há na primeira parte uma visão infantilizada, apesar de os poemas trazerem reflexões muito profundas. É aí que está a genialidade de Blake, ele consegue, utilizando o olhar inocente de uma criança, apresentar um cenário altamente crítico.Blake não foi o único, John Boyne também teve o talento para encenar um mundo cruel visto pelos olhos de uma criança.
Em “O menino do pijama listrado” Boyne retrata a vida de Bruno, um menino alemão, filho de um militar que ocupa um cargo importante. Detalhe: o período da narrativa é o Holocausto, ou seja, temos como cenário a Alemanha nazista em plena atividade. Bruno mora em Berlim, no entanto sua família é transferida para o interior, para que seu pai possa exercer um cargo ainda mais influente. O livro é todo contado pelos olhos de Bruno.
Quando Bruno e sua família chegam ao interior, fica claro que eles estão vivendo ao lado de um campo de concentração, mas Bruno, no seu olhar inocente, acha que o campo é na verdade uma fazenda. Ao longo do livro o leitor consegue identificar várias referências ao horror do Holocausto, mas mesmo assim o próprio narrador (Bruno) não percebe todas essas referências. É aos poucos, tendo contato com seu amigo Shmuel e fazendo perguntas aos adultos que ele começa a perceber o que realmente está acontecendo à sua volta. Um exemplo: no início da narrativa o pai de Bruno é um herói e o menino acredita que ele seja um homem muito bondoso e honrado. Essa ideia que Bruno tem muda com o tempo e surge uma grande dúvida quanto ao caráter do pai.
Quando acontece esse choque entre ignorar e saber daquilo que ocorre ao seu redor, Bruno hesita em acreditar nas coisas que vai descobrindo, mas com o tempo torna-se difícil negar certas evidências. É nesse ponto que podemos puxar um link com a obra de Blake, porque Bruno representa a inocência, sendo uma criança com boas condições de vida. Todas as mazelas do mundo, que ficam claras para o leitor, a princípio passam despercebidas para ele. Há uma quebra de valores gradativa para o garoto, pois aos poucos ele começa a perceber toda a crueldade que o cerca. É nesse ponto que entra a experiência, pois mesmo que ele não tenha uma noção completa do que é o Holocausto que ocorre a sua volta, ele percebe que o mundo não é tão cor de rosa quanto pensava.
Em “O sol é para todos” Harper Lee consegue a mesma proeza, uma vez que ela também apresenta um cenário preconceituoso e cruel a partir dos olhos de uma menina pequena que não tem noção de toda essa maldade que a cerca. Nessa narrativa há o caso de um homem negro que é acusado de estuprar uma mulher branca e corre o risco de ser condenado à morte, sendo o pai de Scout (a narradora) o advogado que defenderá o negro acusado. Seguindo a narrativa de Scout, o leitor consegue perceber o racismo colado à sociedade americana dos anos 1930, no entanto, a própria Scout tem dificuldade em entender exatamente o que está acontecendo ao seu redor.
Fica perceptível o choque de ambas as personagens inocentes com as sociedades racistas, preconceituosas e eugênicas em que elas vivem. Da mesma maneira, existe um grande choque entre as partes da obra de Blake. Esse apontamento da inocência dessas personagens pode inclusive remeter a Rousseau e o mito do bom selvagem. Os narradores, que são crianças, ainda não foram corrompidos pelas sociedades em que vivem, mas essa corrupção está diante de seus olhos e eles a descrevem sem que a notem de fato.