Cor
Entrou em pauta quais termos seriam usados para cor-barra-etnia no formulário do Exame Vestibulante Nacional. Imediatamente Tição falou:
– O que sugiro é colocarmos branco, negro, pardo e indígena. Qual a próxima pauta?
– Um instante, por que tanta pressa? – indagou Junina, no que Gugu rapidamente concordou:
– É. Pra começar, negro está errado…
– E pardo é cor de papel – emendou Cheiraflor.
Tição: Calma. Como assim negro está errado?
Gugu: Por que tudo de ruim é negro? Magia negra, buraco negro, humor negro, quadro negro, diamante negro, cu…
Tição: O que você sugere então? Afrodescendente?
Cheiraflor: O problema é que nem todo afrodescendente é negro.
Tição: Parece que nem os negros são negros.
Junina: Não fala besteira, Tição.
Tição: Mas quem falou não fui eu, foi o esquisito ali. Além disso estamos discutindo o quê? Cor de pele ou etnia?
Gugu: O certo é preto.
Cheiraflor: Porque negro é ruim?
Gugu: É.
Tição: Isso não faz o menor sentido. Na verdade me soa uma falácia. Peixe boi não é nem boi e, assim como o caranguejo, nem peixe.
Junina: Caranguejo não é peixe?
Gugu: Não. [Junina: Quem diria!] E quem é você para falar quem é o que? Você nem é negro.
Tição: Como não?
Gugu: Você é preto.
Tição: Preto é a tela do meu celular quando está ocioso ou desligado.
Gugu: Olhe para você, seu imbecil. Você é preto.
Junina: Já que vamos mudar as coisas, sugiro que mudemos as posições no formulário para negro, branco, pardo e indígena.
Gugu: Preto.
Cheiraflor: Pardo é cor de papel.
Tição: Mas por que mudar a ordem?
Cheiraflor: Por que branco sempre tem de vir primeiro?
Gugu: É. No xadrez as brancas sempre vêm antes. Nas histórias, o mago branco é o mago bom e o mago negro é o mago das trevas. Sempre o branco vem primeiro, sempre o preto vem depois.
Cheiraflor: Na bíblia as trevas vem primeiro.
Tição: E quem disse que bíblia é confiável em relação aos fatos?
Gugu: Nisso o ne… digo, o preto racista ali tem razão.
Junina: Parem de falar merda, vocês dois. Respondendo à sua pergunta, sugiro que mudemos para deixar a coisa toda arbitrária.
Tição: Mas se você escolher o que vem primeiro, estará escolhendo. Então não é arbitrário.
Cheiraflor: Então devemos sortear. Ou isso, ou criamos um critério.
Tição: Isso é ridículo de tão desnecessário.
Gugu: Na verdade eu adoraria que refletíssemos a história nessa ordem. Colocaríamos indígenas primeiro, já que estavam aqui antes.
Tição: he he he! Sabe o que isso significa, certo?
Gugu: O quê?
Tição: Os brancos vieram primeiro.
[Gugu incha de irritação]
Cheiraflor: Além disso, indígena é um termo ruim. Vem de índio, que quer dizer indigente. Sugiro nativos americanos.
Tição: Sabe que todos somos nativos americanos por termos nascido na América, não sabe?
Cheiraflor: Foda-se!
Gugu: Vamos sortear.
Junina: Ou podemos dizer que sorteamos e deixar negro vim primeiro.
Tição: Mas que porra de discussão é essa? Não vejo motivo algum para mudar a ordem. Nem para usarmos preto no lugar de negro. Chamo tudo isso de ladainha. Se pararmos para avaliar e atribuir uma denominação literal, eu teria de ver marrom escuro escrito no formulário para me sentir representado.
Gugu: Do jeito que está não pode ficar.
Cheiraflor: Definitivamente não.
Junina: Se você não sugerir nada melhor e que seja unânime, as mudanças propostas provavelmente serão implementadas, já que somos três querendo mudar e só você querendo ser o conservador de merda aqui.
Tição faz um facepalm antes de dar uma sugestão sarcástica que agradou a todos e que não conseguiu reverter.
Três meses depois, os vestibulandos tiveram de escolher entre as seguintes alternativas no momento de preencher a seção “cor” no cabeçalho da prova:
( ) cor de papel pardo
( ) cor da escuridão da noite
( ) cor de burro fugido
( ) preto
( ) marrom claro
( ) marrom escuro
( ) cor de lápis cor de pele
( ) cor de folha A4 branca
( ) cor de café com leite com mais leite que café
( ) cor de café com leite com mais café que leite
( ) cor de café com leite com 50% café e 50% leite
( ) cor de leite misturado com nescau
( ) cor de leite misturado com toddy
( ) cor dos simpsons
( ) cor de nuvem de dia claro
( ) cor de nuvem de dia escuro
( ) cor de quem era negro e ficou branco
( ) cor de quem é branco e pegou muito sol
( ) descendente de povos nativos da América pré colonização, independente da cor.