A solidão
Postal 3
Há erros que os humanos perpetuam, são erros que são inerentes ao funcionamento mecânico da mente humana e é humano desligar o cansativo pensamento e sensibilidade e deixar-se dominar pelas pulsões básicas dos mecanismos sexuais e violentos.
Há uns tempos, alguém dizia a outro que o fulano de tal era homossexual e o outro responde “estranho, ele até é casado e tem filhos”. Este “até” mostra que alguma coisa no ser humano é incurável.
O fim do século XX e o XXI são os séculos da solidão, do aborrecimento e da depressão. Dizemos “ele não fala com ninguém, está muito isolado e só”. Mais um “até” como o outro do homossexual, são as coleções de antídotos que a ignorância é pródiga. Como se, sair e estar com pessoas e emitir sons pelo aparelho fonador, vulgo “falar” com alguém pudesse, de alguma forma, ser um antídoto para a solidão.
Nós estamos todos sós. Não é só no fim e no fundo que estamos sós: estamos sempre todos sós. O resto é a tradicional e eterna lista de distrações provisórias de que o mundo é pródigo. Sobre o humano, ninguém inventa nada de novo, está tudo já escrito em Homero, na Bíblia ou em Shakespeare.
Dizer que alguém está só porque não vê ninguém é não conhecer a solidão.
Temos sempre duas solidões, uma delas é acompanhado.
Quem está mais só o anacoreta, o monge silencioso, o eremita ou a menina que é Relações Públicas da discoteca, tem 5 000 amigos no Facebook e 20 000 curtidas nas suas fotos de bikini no Instagram? Estão os dois igualmente sós, só que um decidiu não usar maquilhagens. Metafisicamente, a menina está muito mais só, mas isso é um assunto vasto demais para um postal.
Segundo a ideia simplista, o mundo dividir-se-ia entre os que estão sós e os outros que fruto de muito livro de autoajuda, muita comunicação e muito sucesso social não estão. Essa ideia é falsa, o mundo divide-se, isso sim, entre os que sabem que estão sós e os que não sabem e não querem saber.
O erro resulta de misturar solidão e isolamento.A solidão não é um drama é apenas uma face da tragédia de existir. Depois de ser colocado face ao mistério da existência efémera do Eu, os artifícios sociais de esquecimento perdem totalmente a eficácia.
A primeira ilusão é que as “relações humanas” são antídoto para a solidão. Não são, pelo contrário, nas relações humanas é sempre escondida e recalcada a solidão individual, o charme dos sedutores dá sempre lugar ao cheiro nauseabundo da mentira que fica após a ilusão.
Os comunicadores super simpáticos são filhos de um vazio profundo, é por isso que, normalmente, quando se conhece a sua vida pessoal aparece uma lista dramática de vícios e taras.
Não há luta possível contra a solidão, só há uma única coisa que todos os humanos fazem: escondê-la.
A Yoko Ono disse que, quando conheceu o John Lennon, passaram a estar os dois sós no mundo…
Prezado amigo,
Escreves como se o teu interlocutor, sempre, fosse um dos grandes na história da Literatura Universal.
Simplesmente incrível.
Obrigado pelas palavras.
Estamos a sós conosco, ainda que estando acompanhado de nós mesmos ou de outros.