Os Mortos… sempre os tereis entre vós

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Em 1914, James Joyce escreveu uma coletânea de contos (short stories) que tomou o nome de “Dubliners” (Dublinenses). Os quinze contos versam sobre a vida da cidade, os relacionamentos conjugais, questões políticas, experiências pessoais e algumas “epifanias”. Todos os temas de todos os contos estão empilhados em camadas e condensam-se numa explosão final simbólica no conto final Os Mortos, onde vastas hostes de mortos regressam para um ajuste final de contas.

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Neste Ensaio faço alguns levantamentos temáticos procurando, na medida do possível, manter-me dentro da periferia do conto “Os Mortos” (The Dead). Qualquer abordagem a qualquer fragmento da obra joyceana é sempre atraída pelo desequilíbrio entre o trecho e o todo, em cada perícope está o todo: é fácil fazer pontes simbólicas e de mecânica criativa entre os Contos, o Retrato de um Jovem Artista (Portrait of an Artist) e o Ulisses (Ulysses) – essa armadilha exegética foi montada de propósito pelo autor e não é fácil não cair nesta tentação.

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O conto é vanguardisticamente escrito na perspetiva do personagem principal o que obriga o leitor a participar na construção da ação, anunciando já o mergulho do fluxo de consciência futuro de Ulysses: o leitor torna-se Gabriel, personagem central, e Gabriel torna-se Joyce – e a ponte subtil entre escritor, autor, voz narrativa, personagem e leitor fica sólida e futuristicamente estabelecida, permitindo a Metáfora perfeita de como a Literatura pode mudar a nossa perspetiva do mundo e, consequentemente, mudar-nos.

Gabriel é a figura central de toda a família, o menino bonito das tias, o equilibrado e culto, alguém que acredite na felicidade dos outros, diria que, casado com uma belíssima mulher e com três filhos, seria o marido feliz, de uma forma geral, estaria na melhor posição face à vida, mas um dominó de pequenos acontecimentos vai deslocar a sua visão e posição no mundo para uma inquietante estranheza e tudo se lhe vai revelar como um fracasso. Ao “Retrato e um artista quando jovem”, segue-se este “Retrato de um artista velho e falhado” em que “tudo a neve levou”, Gabriel, que pensava ser o amor da vida da mãe dos filhos, descobre que não passa, de alguma forma, de “outro”, ele que pensava ser central na vida dela, descobre-se apenas como “the second best thing” e descobre que está no “lugar do Morto”, no lugar do grande amor – qualquer marido é, no máximo, um tipo de amor realizado que ficará sempre aquém do idealizado.

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A neve sepulta todas as ilusões…

Gabriel, ao entrar no espelho de Alice, através da recusa pessoal-sexual da mulher, vai fazer toda a viagem do gigante ao liliputiano. James Joyce, nesta Morte final e total, pretende dar-nos uma lição de humildade: ele Gabriel, o protagonista (e ele Joyce o escritor sideral) é, no fundo, impotente face aos mortos que dominam tudo à volta, face à mortalha lívida da neve e face à vida.

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Os sinais subtis do dominó de falhanços estão todos presentes no eixo narrativo, a crónica dos micro-falhanços começa com a má abordagem à garota que o recebe à entrada, Silly, ao discurso, à forma como limpa as botas, etc. Joyce passou pessoalmente por todas estas situações de festas de Natal com as tias e no seu dominó de falhanços acabou um professorzeco de línguas, pobre e doente e nós, leitores, fruto dos nossos falhanços acabamos uns a ler os contos e outros até a escrever em segunda mão sobre os mesmos.

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De boas intenções está o inferno da comunicação cheio.

Gabriel tem a intenção de chegar ao grande público, ao grande círculo, e, na sua boa fé, escreve, quase pro bono, num jornal uns pequenos artigos sobre Literatura e ao invés de ser bem visto por isso, é ainda confrontado por Miss Ivors que só consegue ver a cor política do jornal. Tema recorrente em Joyce: a religião e a política como os dois grandes assassinos de toda a criação. Dentro de outros limites e públicos, procura chegar a um círculo mais pequeno e familiar e falha no discurso natalício.

Mantém com a mulher um tom típico de quem se conhece desde criança e, no âmbito do círculo mais íntimo, no quarto de dormir, procura-a numa tentativa de intimidade física e discursiva e é rechaçado como um mero macho “que só pensa em sexo”… fica assim reduzido ao silêncio da neve, do sono dos outros e da morte.

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Todos os contos têm alguma epifania e todos os temas dos contos prévios estão presentes em todos os outros – fazer esse levantamento exaustivo é um desafio abrangente e interessante. Finda a noite festiva, à saída, com a audição da canção de Laiden, inicia-se o levantar do véu de Maya que vai conduzir Gabriel a um conjunto de epifanias, a pequena paragem para ouvir uma canção numa tonalidade antiga irlandesa vai abrir a porta ao apocalipse da vida tal como era percecionada.
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Depois de tanta agitação e barulho, uma pequena canção longínqua faz parar a mulher de Gabriel e esta paragem desperta em Gabriel um frémito de desejo sexual porque ecoa nos tempos em que ele a contemplava desejando-a… mas em vez de sexo, Gabriel vai receber lágrimas e a explicação das lágrimas vai destruir totalmente as ilusões amorosas em que Gabriel vivia. Tarde ou cedo, alguma confissão e/ou informação acaba com as nossas ilusões amorosas. Gretta deita-se e dorme sacudida pelas lágrimas pelo seu grande amor…e Gabriel, como quase todos os maridos, descobre que foi sempre “o outro”. Primeiro contempla-a dormindo o sono das infelizes casadas com o homem errado e percebe que nunca terá o amor dela, depois, simbolicamente, volta para a janela para confirmar que a sua vida não tem qualquer sentido: a neve “paralisa” (primeiro conto) a Irlanda e paralisa-lhe a vida toda. Não há forma de separar o passado do presente, os mortos sempre os tereis entre vós, nem forma de separar os mortos dos vivos.

Michael Furey, o antigo amoroso, apesar de “morto”, como diria Sóror Juana Inés de la Cruz, goza de boa saúde, determina a vida da mulher de Gabriel para sempre: não se pode matar os mortos, nem ninguém mata um grande amor.

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A confissão de Gretta assassina Gabriel! Este fica sem saber o que fazer: primeiro zanga-se, depois sente-se humilhado, depois sente que andou estes anos todos, como todos os maridos, a fazer a figura estúpida de marido amoroso. Gretta sabe amar, ama como quase todas as mulheres: ama figuras idealizadas, ama homens do passado, ama quem morreu, ama quem está longe, ama aqueles a quem não teve que fazer o almoço. Ama todas as figuras idealizadas, só não ama o marido que a ama, que está ao seu lado e está vivo.

Gabriel é a metáfora perfeita do nosso tempo: tem toda a gente à sua volta e vive em profunda solidão, é incapaz de tocar ou compreender o próximo.

Cai a neve como uma cortina branca sobre o teatro risível da vida: o morto será esquecido e, com todas as suas virtudes, Gabriel e nós os leitores também.

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