Postal 1, Kafka e Milena, Premonições e profecias

A tese de George Steiner defendida e desenvolvida, sobretudo, no Language and Silence (Linguagem e Silêncio), é simples: a Linguagem foi destruída com as atrocidades do século XX, em particular, com o genocídio dos judeus perpetrado pelo nazismo.

Esta transformação da linguagem, em particular do alemão, está bem patente na luta premonitória de Franz Kafka com a escrita.

A Metamorfose é a história de alguém que se transforma numa coisa inominável, numa espécie de insecto que se transformará em pó e acabará por ser varrido. Tudo o que se transforma ou classifica como um insecto é passível de um insecticida e foi isso que o nazismo fez: tudo começa pela classificação dos judeus como ratos e o insecticida apareceu. O milagre da metamorfose da linguagem.

Assim também são os nossos dias: tudo foi reclassificado e renomeado por horas de bombardeamento mediático e pressão social. Um mundo de pessoas de plástico, sem qualquer outro valor que não seja o consumo, vendendo mentiras e ilusões a outros que se sentem sozinhos e deprimidos por não ter acesso ao Nada.

Sempre achei exagerada e típica do histerismo judaico a comparação que Steiner faz entre Kafka e os profetas de Israel, mas numa releitura recente das Cartas a Milena dei-me com passagens perturbadoras.

Deixo aos leitores uma passagem de uma das cartas de Kafka:

“… gostaria de juntá-los a todos e classificá-los simplesmente como “judeus” (eu incluído) e colocá-los numa gaveta da lavandaria. Depois esperava e abria só um bocadinho a gaveta para ver se já estavam todos sufocados, caso não estivessem, fechava a gaveta novamente e repetia o procedimento até acabar com todos”
Franz Kafka, Cartas a Milena, Meran, 13 de junho de 1920, Domingo
(Trad: Frank Wan)

O tema do auto-ódio judaico é demasiado grande para um postal tão pequeno.

A carta é de 1920, Hitler mal tinha saído do exército finda a Primeira Guerra e ingressava na NSDAP, Partido dos Trabalhadores Alemães Nacionais Socialistas (Nationalsoziaistische Deutsche Arbeiterpartei).

Se a passagem anterior das cartas de Kafka a Milena é perturbador e profético, a descrição de um sonho que Milena faz em 1919 é totalmente futurista:

“O planeta tinha sido todo varrido por uma Guerra, trens (comboios) intermináveis saíam da estação um após o outro…o mundo transformava-se numa rede de vias férreas que transportavam seres apavorados, seres que tinham perdido a casa e a pátria. Os trens (comboios) paravam no vazio. Era o posto de controle! O inspector aduaneiro aproximou-se de mim. Eu olhava para os documentos, li-os e estavam escritos em vinte línguas diferentes: condenados à morte!”

Milena, no fundo, viu, 20 anos antes, o seu próprio destino: Milena Jesenská foi presa pela Gestapo, levada para o campo de concentração feminino de Ravebsbrück onde viria a morrer no dia 17 de Maio de 1944.

FIM

“… eine viel zu gute Meinung hast, manchmal möchte ich sie eben als Juden (mich eigen eigeschlossen) alle etwa in die Schublade des Wäschekastens dort stopfen, dann warten, dann sie Schublade ein wenig herauszien, um nachzusehn, ob sie schon alle erstckt sind, wenn nicht, die Lader wieder hineinschiben und es so fortsetzen bis zum Ende.”
Franz Kafka, Briefe an Milena , Meran 13 Juni 1920, Sonntag

Franz Kafka, Cartas a Milena, Meran, 13 de junho de 1920, Domingo
(Trad: Frank Wan)

2 comentários em “Postal 1, Kafka e Milena, Premonições e profecias”

    • Todos nós que escrevemos, escrevemos sobre os destroços da Linguagem. De alguma forma, escrever é uma forma procurar reconstruir qualquer coisa, há sempre um elemento de algum tipo de “salvação” em toda forma de arte.

      Obrigado, Adalberto

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