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Paul Bowles, Um chá no deserto do nosso descontentamento

Poucas vezes a humanidade viu tanto talento condensado num único homem, Paul Bowles foi um tradutor excepcional, grande músico, musicólogo e compositor, mas é como

Poucas vezes a humanidade viu tanto talento condensado num único homem, Paul Bowles foi um tradutor excepcional, grande músico, musicólogo e compositor, mas é como escritor que fica na história das artes. Apesar da grande influência que teve sobre muitos músicos ainda ativos, hoje é uma figura musicalmente esquecida, como são esquecidos todos os que não participam na cultura de massa.

Paul Bowles, Um chá no deserto do nosso descontentamento 41

The sheltering sky, editado em 1949, traduzido em Portugal por O Céu que nos protege e no Brasil por Um chá no deserto, é o romance que lhe trará notoriedade: foi uma obra bem recebida pela crítica e um grande sucesso de vendas para o qual contribui a adaptação para cinema de Bernardo Bertolucci.

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Paul Bowles, Um chá no deserto do nosso descontentamento 42

A narrativa tem uma estrutura bastante simples: um casal de New York enfrenta os habituais problemas conjugais e decide fazer uma viagem ao Norte de África acompanhado por um amigo. A simplicidade da narrativa, densidade dramática e filosófica, a existência de poucos cenários e personagens, leva muitos críticos a facilmente classificá-lo como um “romance existencialista” na linha da obra de Camus ou Sartre, entre outros.

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Paul Bowles, Um chá no deserto do nosso descontentamento 43

Numa leitura mais profunda, as muitas simplicidades aparentes dão lugar a labirintos simbólicos e emocionais. O deserto revela-se não apenas como um cenário de fundo passivo, mas como todo um personagem, tema e tela onde vão ser projetadas toda a paleta de crises: do casal em particular até às crises múltiplas do mundo moderno pós-Segunda Guerra Mundial. New York é uma cidade rica, cheia, barulhenta, consumista e moderna, mas não tem respostas para o “deserto” interior da vida do casal, nem respostas existenciais e assim nasce a atração pelo oposto: o deserto, o silêncio, a carência, a pobreza. O deserto real, fictício e imaginário vai revelar o que está escondido no mais profundo da alma humana.

Este exílio voluntário e esta viagem reveladora espelha, sem sombra de dúvida, a opção de vida de Paul Bowles: apesar de educado na cidade de New York decide radicar-se em Tânger, no Norte de Marrocos, onde viveu o resto da vida, tornando-se, assim, uma figura clássica do artista americano emigrado e a sua casa um ponto de referência para a vida cultural e alternativa da época.

Numa abordagem simples facilmente se classifica o romance como Literatura de Viagem, mas mais do que a descrição das experiências particulares ou descobertas, temos toda uma reflexão alargada acerca da viagem e da filosofia da viagem, totalmente ao arrepio do mundo consumista filho da Grande Guerra em que a viagem turística vai tornar-se um objeto de consumo compulsivo.

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A reflexão em torno da temática da viagem abre com a tirada de Port “Ele não se via a si mesmo como um turista, mas sim como um viajante” (He did not think of himself as a tourist; he was a traveller). O viajante permite que os lugares e as viagens desafiem os seus padrões de conhecimento e os seus pressupostos estéticos, sociais e humanos, já o turista apenas colhe impressões e, normalmente, julga a partir dos seus padrões e pressupostos, tudo o que toca torna-se apenas objeto de comparação com imagens pré-estabelecidas rejeitando tudo o que “não lhe agrada”. Os personagens fazem uma viagem no deserto ou, como Paul Bowles afirma, nos dois desertos, o exterior, sem vetores de orientação, usando a linguagem deleuziana e o interior, o deserto do espírito, do vazio existencial.

Somos sempre viajantes, o homem constitui-se na viagem, o nomadismo é o estado natural do homem, quando as circunstâncias exteriores, sociais ou pessoais, não permitem a viagem, o homem viaja na imaginação e no desejo, procuramos sempre alguma coisa que está longe, mas mantemos sempre a tensão entre o desejo de partir e a saudade da estabilidade caseira. No coração do homem, em segredo ou expressamente, em algum lugar longínquo, por vezes, basta que o lugar seja longe para que seja bom, reside a promessa de uma felicidade futura, já que no nosso perímetro vital só temos o aborrecimento da repetição e a mediocridade previsível e tantas vezes experimentada.

Curiosamente, o casal, a par do deserto como paisagem e África como destino, escolhe Tunner, um terceiro para os acompanhar e Tunner tem muitas características típicas do turista: agenda-se para preencher as horas da viagem, mantém-se ocupado como querendo “aproveitar” a viagem e pretende seduzir Kit – no mundo moderno a viagem turística está associada à viagem com companhia sexual ou busca de destinos de turismo sexual, no mínimo, há sempre a promessa velada de atuar fantasias recalcadas que o cenário familiar da sua cidade/local não permite atuar.. Kit acredita que, estratégia muito eficaz com as mulheres fúteis, com a dose certa de champagne, novos cenários, entusiasmo de viagem e o seu charme pessoal conseguirá seduzir Kit: é um turista típico em busca de aventura.

Se Tunner é um turista e Port um viajante, Kit é uma mulher em busca de si mesma, alguma coisa entre os dois extremos e é por isso que a segunda parte do livro é ocupada com a longa estadia de Kit já fora da égide dos polos masculinos que trouxe de New York evoluindo no deserto com pessoas do deserto.

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O Deserto do nosso descontentamento.

No deserto tudo perde sentido porque não existem pontos de referência, nem mapas, nem caminhos que orientem o viandante, é o lugar por excelência, reutilizando a linguagem deleuziana, da “desterritorialização”, é um espaço sem conceitos espaciais e, portanto, não permite a construção/apropriação civilizacional: não existe nada mais “selvagem” e cru que o deserto.

Estranhamente, o casal vai procurar manter a frágil vida da relação no deserto, local onde, por definição, nada de biológico sobrevive e tudo desaparece: desaparece a identidade individual, a identidade do casal, as categorias cosmopolitas, os hábitos, as redes de sustentação sociais. Port e Kit procuram salvar a relação, salvar-se a si mesmos e salvar a Civilização Ocidental.

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O deserto e a viagem são o espaço onde se pode ganhar ou perder, é isso que o “turismo” evita: ninguém se perde. Port perde, simbolicamente, o passaporte e a partir daí a sua identidade psicológica e física precipitam-se para a morte. A perda de Port é um ganho: gradualmente vão fundir-se a vida e a morte, à medida que perde a vida, vai ganhando uma Kit cuidadora: muitas vezes é na doença final que se ganha o amor que se esperou toda a vida de quem estava do nosso lado, ganhando assim um “céu protetor”, é o céu africano que ele contempla no final e que lhe dá a sensação de ter conseguido o que pretendia e chegado ao seu destino. Os desertos e os céus são todos iguais e são sempre diferentes.

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Fica assim completa a trindade de Paul Bowles: fez da sua vida uma eterna viagem a África abandonando a barulhenta New York, traduziu a música e as línguas fazendo um magnífica ponte entre “civilizações”; fez todo o turismo que lhe foi possível…e perdeu-se como uma mulher que se procura e funde com o deserto e as gentes…
… terminado o livro, fica o eco da Sinfonia do Deserto…

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ADALBERTO DE QUEIROZ
6 anos atrás

Como quase tudo que escreve, Frank Wan foi de novo excelente.

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