Escrita e local de fala

A literatura escrita por mulheres garantiu não só direito de expressão às escritoras, mas também o direito à criação intelectual e artística. De criaturas elas passaram a ser criadoras. As mulheres sempre foram personagens de romances e estudos diversos, mas trilharam um caminho longo, enfrentando o preconceito, ainda hoje presente na sociedade. Prova disso é o fato lembrado por Marcelo Spalding, em seu artigo “A literatura feminina de Adélia Prado”: a escritora Amélia de Freitas Beviláqua, candidata a uma cadeira na ABL, em 1930, teria sido recusada “com a justificativa de que no estatuto constava que a Academia era apenas para os brasileiros, não para as brasileiras” (SPALDING, 2016). O autor cita também escritoras de renome na literatura brasileira e que foram deixadas de lado pela instituição, como, por exemplo, Cecília Meireles e Clarice Lispector. Outro fator que exemplifica o preconceito que, mesmo hoje, no século XXI, acompanha a produção artística de mulheres é o adjetivo “feminina”, que rotula a literatura produzida por escritoras, “enquanto um livro como Memórias de minhas putas tristes, de autor masculino, narrador masculino e conflito masculino é tido por literatura, sem o adjetivo ‘masculina’” (SPALDING, 2016).

Igualmente interessante para demonstrar o preconceito foi a resposta que Adélia Prado recebeu, depois de enviar um de seus poemas ao Pasquim. O periódico respondeu publicando que ela escrevia “parecendo lavadeira nanica que perdeu o sabão na beira do rio” (FRANCESCHI, 2000, p. 72). Adélia, porém, não deixou por menos e escreveu o texto “Pasquilixo”, publicado com a ajuda de um amigo.

Norma Telles, em estudo sobre as escritoras brasileiras do século XIX, relaciona expressão, inconstância e liberdade, levando em conta essa resistência que existe em relação à literatura feita por mulheres. “A inconstância é força criativa, na medida em que significa a recusa, por parte da mulher, em se deixar fixar ou silenciar e significa sua insistência numa maneira própria de ser” (TELLES, 1999, p. 328-329, grifo no original). Esse processo revela-se complexo, pelo fato de a mulher ter sido “gendrada” (LAURETIS, 1994, p. 211), de modo a corresponder a um perfil imposto ao gênero feminino. Assim, para representar seu papel convenientemente (sob a ótica patriarcal), ou convencionalmente, teve de reprimir atitudes e pensamentos. Porém, ao decidir criar, passando de criatura a criadora, ela teve de resgatar o que deixou à margem, tentando encontrar-se ou descobrir como era de fato, para, dessa forma, reagir às expectativas da sociedade patriarcal em relação ao seu comportamento, sobretudo no que dizia respeito ao casamento e aos filhos. A autora sistematiza esse percurso, imposto à mulher, pela atividade artística, da seguinte maneira:

Sendo assim, quando se contempla no espelho ela enxerga as sombras que foram sobre si projetadas, imagens que a apagaram, pois escondem sua possibilidade de ser. […] antes de atingir autonomia, ela deve repassar e repensar as imagens do espelho, isto é, as “máscaras míticas” que lhe foram colocadas. Isto quer dizer que a mulher para poder escrever terá que matar, como disse Virginia Woolf, o anjo do lar, os ideais femininos estéticos que a deixaram fora da arte. (TELLES, 1999, p. 327, grifo no original)

A escritora Adélia Prado aceitou o desafio da desconstrução do que lhe foi dado/imposto, fazendo de sua arte um espaço de resposta ao sistema. Pensando na questão atual, sobre o local de fala, podemos afirmar que a atitude da autora põe em evidência o que Giovana Xavier classifica como o “turning point nas nossas narrativas” (RIBEIRO, 2017, p. 22). Protagonizando essa ação, na arte literária, Adélia Prado, já na década de 1990, adota uma postura que, de acordo com o que Audre Lorde discute hoje, em pleno século XXI, contraria o discurso excludente, o qual, por sua vez, “não viabiliza outras formas de ser mulher no mundo” (RIBEIRO, 2017, p. 51). Claro que essa reação não é feita em tom panfletário. É mais correto dizer que o eu lírico criado pela autora refrata, nos poemas, a duplicidade ou a inconstância feminina, delineando, simultaneamente, o aspecto que segue a convenção e aquele que reage a ela:

[…] Adélia Prado parecia ultrapassada porque aparentava dar um passo atrás na luta das mulheres por seu próprio discurso e espaço. Por outro lado, o
machismo, sempre presente nos processos culturais vigentes em nosso país, desgostava desse mesmo discurso pelo excesso de sacristia que parecia nele interferir. (FRANCESCHI, 2000, p. 73, grifo no original)

Com essas palavras, Antonio Hohlfeldt dimensiona a repercussão da literatura da escritora mineira no discurso hegemônico, o masculino. Além disso, reforça-se a posição dual da mulher, como se essa estivesse na fronteira do que deve ser e do que é realmente.

Desse modo, a desconstrução dos estereótipos de gênero inverte as qualidades que a sociedade patriarcal associa ao feminino e ao masculino. Essa posição “inconstante”, volúvel e, aparentemente, contraditória da mulher, em sua produção artística, é inevitável, para Elaine Showalter, que considera a escrita das mulheres “um ‘discurso de duas vozes’, que personifica sempre as heranças social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante” (SHOWALTER, 1994, p. 50, grifo no original).

Um dos mais famosos poemas de Adélia Prado, “Com licença poética”, feito a partir de “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade, traz o verso “Mulher é desdobrável. Eu sou” (PRADO, 1991, p. 11). Nesse fragmento, a autora aponta para a multiplicidade de papéis, que, aqui, representa a extrema versatilidade feminina, também imposta pela sociedade. Afirmações como as encontradas nos versos acima dão respaldo para que a escritora apresente e discuta o feminino ligado a seus papéis “convencionais”. Parte da crítica considera isso um antifeminismo. Porém, há que se considerar o fato de a autora promover uma espécie de deslindamento (tanto de assuntos considerados tabus quanto daqueles assumidos e perpetuados pelas mulheres), evidenciando um ponto de equilíbrio e, consequentemente, situando a produção poética da autora em uma zona limítrofe, entre o feminino e o feminismo.

Além disso, deve-se pensar na expressão da função comum ou corriqueira da mulher como uma forma de levar à reflexão e à crítica. Evidente que o feminismo radical é impossível, já que a instituição do casamento, apesar de ter perdido força, principalmente nas últimas décadas, continua existindo, em razão de a sociedade ainda possuir características patriarcais muito arraigadas. Sendo assim, os versos de Adélia Prado optam por um caminho mediano, pois, ao mesmo tempo em que mostram o óbvio, ou o que é visível, diariamente, valorizam também a outra perspectiva, de reação da mulher (como personagem e como autora) aos estereótipos de gêneros.

Em “Resumo”, a escritora mineira dá uma visão pessimista, porém realista, que sintetiza, como o próprio título já menciona, a vida da mulher que desempenha e, por vezes, até prioriza, o papel de mãe:

Gerou os filhos, os netos,
deu a casa o ar de sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA. (PRADO, 1991, p. 15)

Nesse poema, está implícita a falta de companhia, de cuidado, que pudesse retribuir tanta dedicação. Importante também é a resignação diante desse fato, porque ”aceitou ser dispensável” e “espera, sem uivos,” a morte. Não é uma escolha. Trata-se do destino, impiedoso e inalterável, já que sua missão chegou ao fim. Na sociedade atual, é raro a mulher optar por ter vários filhos, mas, ainda assim, a maternidade continua sendo considerada essencial, e quase um sacerdócio. Por consequência, os clichês “Ser mãe é padecer no paraíso” e “A maternidade completa a mulher” continuam a nortear a escolha e o comportamento de muitas mulheres. Mary Del Priore (2005) também chama a atenção para a permanência da maternidade como eixo, em se tratando do gênero feminino, pois, segundo a estudiosa, desde o Brasil Colônia, o casamento tinha a procriação como principal objetivo, não necessitando, portanto, existir sexo associado ao prazer, e isso permanece ainda hoje, embora em menor escala.

Outro papel atribuído à mulher é o de dona-de-casa, que aparece no poema “Cinzas”, de Adélia Prado:

Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,

eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
[…]
Haverá sempre uma nesga de poeira sob as camas,
um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lagrimas. (PRADO, 1991, p. 193)

No fragmento acima, representa-se a tentativa, falida, é verdade, de reação às imposições sociais. O estado da mulher diante da impossibilidade de mudança é aceitação. A crítica aparece no retrato que se faz da dona-de-casa, condição que, com o tempo, a julgar pelos versos transcritos, apagou o romantismo do início do casamento, transformando a vida a dois em algo mecânico e rotineiro. A mulher do poema mostra-se resignada, mas as leitoras de Adélia Prado são levadas a rever sua condição, de modo crítico, reavaliando-se. Por vezes, o fato de essa condição tornar-se um hábito é associado à passagem do tempo, que tudo modifica.

Em “Dolores”, uma voz feminina não se cansa de repetir: “não sou mais jovem” (PRADO, 1991, p. 194). Porém, diante da possibilidade de ter sua beleza e juventude de volta, avisa:

Não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, […],
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus. (PRADO, 1991, p. 194)

Esses versos, novamente, revelam aparente resignação diante desse papel feminino. Porém, em um átimo, o poema torna-se quase uma ode às mulheres, pelo teor de homenagem ou louvor, de modo a dar a elas o valor que não lhes é concedido, normalmente, pela sociedade.

O tema da efemeridade do tempo, agente avassalador para a beleza e a juventude, interfere, diretamente, na sexualidade feminina, na maioria das vezes, e, além de ter sido exaustivamente trabalhado por Cecília Meireles, também encontra espaço na literatura de Adélia Prado. De maneira a superar o eco que se estabelece em “Dolores”, em “Páscoa”, a escritora expressa, por meio do eu lírico, o amargo resultado da ação do tempo, gerando profundo saudosismo em relação ao passado, ao que foi e não é mais:

Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos,
a segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, para chorar.
Eu, que fui loira e lírica,
Não estou pictural. (PRADO, 1991, p. 29)

Os versos do poema em questão organizam-se gradativamente: primeiro, as recordações; depois, a preocupação com a beleza perdida; e, por último, o choro, já que recuperar o que se perdeu é impossível. Esse conflito acentua-se em “Serenata”, poema em que o eu lírico está em um impasse e, por isso, deve tomar uma decisão. Perguntando-se quando fazê-lo, a resposta é determinada pelo tempo, que escoa rápido e a obriga a agir rapidamente:

Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece. (PRADO, 1991, p. 82)

A beleza é, aqui, determinante para o amor e ambos, por consequência, parecem ser privilégios apenas da juventude, denotando uma visão amarga e pessimista da vida, como se o envelhecimento trouxesse apenas coisas desagradáveis. A visão é pessimista e há, de modo bem marcado, a dissociação entre a mulher do presente e a do passado, evidenciando que a fronteira responsável por essa separação é a velhice, transformando a mulher em outra, na qual a primeira não se reconhece mais.

Com os textos apresentados aqui, exemplificamos o processo de revisão e questionamento (do sistema e das tradições de gênero), fundamentado na “inconstância”, que Norma Telles (1999) considera essencial para o fazer artístico, e que caracteriza o caráter dual e oscilante do papel da mulher na sociedade, sempre entre a permanência e a mudança. Consequentemente, esta breve análise expõe movimentos diferentes, tanto na obra de Adélia Prado como na (re)construção do gênero feminino. Esse equilíbrio é o responsável pela sutileza e pela verossimilhança dos textos da autora, que recusa posições extremistas, negando a simples perpetuação dos estereótipos e contrariando também a dissociação/inversão radical e utópica. A saída, portanto, é o comedimento, o que faz a autora privilegiar a condição inerente a qualquer mulher empírica, escritora ou não: a dualidade. Dessa forma, Adélia recusa o “discurso combativo das feministas”, conforme Spalding (2016), mas sem deixar de inserir críticas e questionamentos aqui e ali, desafiando “a constituição ideológica dos modos predominantes de representação” (RICHARD, 2002, p. 136), os quais, para serem revistos, têm de ser contemplados.

REFERÊNCIAS

DEL PRIORE, M. 500 anos de amor. Revista Época, p. 52, 12 dez. 2005.

FRANCESCHI, A. F. de. (Org.). Cadernos de literatura brasileira n. 9. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000.

LAURETIS, T. de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. de. (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 211-234.

PRADO, A. Poesia reunida.São Paulo: Siciliano, 1991.

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. (Coleção Feminismos Plurais).

RICHARD, N. Intervenções críticas. Arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

SHOWALTER, E. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H. B. de. (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 32-54.

SPALDING, M. A literatura feminina de Adélia Prado. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1968>. Acesso em: 08 dez. 2016.

TELLES, N. A mulher e a literatura. In: AUAD, S. V. (Org.). Mulher: Cinco séculos de desenvolvimento na América — Capítulo Brasil. Belo Horizonte: O Lutador, 1999. p. 325-331.

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