Bergson e o Tempo (2)

Heloísa Gusmão

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Heloísa Gusmão
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Parte II- O TEMPO SEM A INTELIGÊNCIA

Negada a concepção vulgar de tempo, Bergson terá que elaborar, então, uma filosofia que, abandonando o instrumental da filosofia conceitual, seja capaz de espelhar o que é a apreensão de sucessão que um indivíduo tem ao ser posto na realidade do tempo. “Saltemos por cima dessa representação intelectual do movimento, que o desenha como uma série de posições. Encaminhemo-nos diretamente para ele, olhemo-lo sem conceito interposto: descobrimo-lo simples e feito de uma peça só”. Segundo comenta J. Maritain, para Bergson, o conhecer não poderia ser intelectual, mas vivencial: “Quanto mais se conhecesse intelectualmente menos se compreenderia. A tragédia do espírito consiste em que nosso conhecimento dos objetos como que nos obstrui para a concepção íntima e central”[1]. Olhemos, numa palavra, para a experiência de apreensão da temporalidade, que é dada não como a composição de frames espaciais fixos, mas como a consciência da demora de geração de um futuro imprevisto. Há de se fazer notar que esta consciência interior (ou pessoal) é ela própria constituída pela vivência da geração temporal:

“Mas esta duração, que a ciência elimina, que é difícil de conceber e de exprimir, nós a sentimos e vivemos. Se procurarmos saber o que ela é, como apareceria a uma consciência que desejaria apenas vê-la – e não medi-la, que a agarraria sem imobilizá-la, que se tomaria a si mesma por objeto, e que, expectadora e atriz, espontânea e refletida, aproximaria até fazer coincidir a atenção que se fixa e o tempo que escapa? Tal era a questão. Através dela penetramos no domínio da vida interior” [2]

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Henri Bergson

Em “Movimento e Totalidade em Bergson”, Regina Rossetti comenta que essa vida interior seria o “acesso privilegiado para o movimento da totalidade”[3], isso porque se trata de uma experiência primeva do movimento de algo em constituição e, portanto, a mais evidente para nós. Este modo de apreender, que é a o mesmo tempo expectador e ator, faz coincidir a apreensão com a própria duração ou se constitui no interior do tempo e é, portanto, o modo mais adequado de se compreender o tempo. A tese de Bergson é: apenas ao aderirmos ao movimento de produção de realidade é que poderemos apreendê-lo. Por essa razão, a investigação que até então se voltava para o tempo e o movimento, agora, sem mais dificuldades, torna-se uma investigação sobre a vida interior, sobre a pessoa e sobre a consciência. Tal consciência, como dito, é constituída e constitui movimento e, a esse caráter geracional da consciência, Bergson, no Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, dá o nome de ato livre, expressão de uma consciência em duração.

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Primeira publicação em 1889.

Caberia a Bergson então tecer uma crítica à concepção associacionista de pessoa. Tanto as vertentes intelectualistas quanto as mais empiristas, apesar de contrárias, consideram o eu segundo uma associação unitária de múltiplos estados de consciência. Numa palavra, tais estados de consciência são análogos aos frames do fotograma. Porém, para Bergson, o que caracteriza a pessoa não é a multiplicidade dos estados de consciência nem o substrato unitário sob tais estados, mas a continuidade. “Sistematicamente, desviou-se o olhar da duração real. Por quê? A ciência tem suas razões para fazê-lo, mas a metafísica, que precedeu a ciência, já operava desse modo e não possuía as mesmas razões”. A razão alegada por Bergson é que a filosofia conceitual teve de se submeter às exigências espacializantes que a própria linguagem faz para que os conteúdos sejam comunicados: “a linguagem e a inteligência fixam termos que realmente não existem. Tal conhecimento não é, portanto, um conhecimento metafísico da realidade”. De fato, a linguagem é generalizante e abstracionista e toda a metafísica, enquanto discurso, busca dar razão, logos e medida unitária aos particulares vivenciados. Tanto é assim que Bergson atribui o nascimento da metafísica ocidental ao paradoxo de Zenão:

“a inteligência caracteriza-se igualmente pelo fato de, por natureza, ser-lhe impossível compreender a duração real, a vida. Constituída de acordo com a matéria, ela transfere as formas materiais, extensivas, calculáveis, claras e determinadas, ao mundo da duração; interrompe a corrente vital única e introduz nela a descontinuidade, o espaço e a necessidade. Não pode sequer compreender o simples movimento local, como o provam os paradoxos de Zenão” [4]

Clique aqui para ler a primeira parte (de 3) deste ensaio sobre Henri Bergson.

A função própria da inteligência é a fixação e não a temporalidade, por isso faz a simbolização do movimento segundo a trajetória de um corpo no espaço. Mas não somos inteligências desencarnadas, somos corporeidade. A proposta de Bergson é que olhemos para nós mesmos como seres em continuidade e, a partir dessa visada, prestemos atenção a esse sentido primordial que vai de encontro à conceitualização simbólica de fixação do movente. Eis uma proposta evolutiva de “ampliação do homem”. Não se trata de uma proposta de abandonarmos o intelecto, mas antes de não nos restringirmos ao que é próprio do material, ampliando o horizonte de consciência humana para as outras formas que nos são aderentes. Isso porque há uma diferença radical “entre uma evolução cujas fases contínuas se interpenetram por uma espécie de crescimento interior e um desenrolar cujas partes distintas se justapõem”. Bergson, ao final, celebra o fato de que dessas reflexões contra o primado do intelecto resultem conclusões que se banalizaram:

“Elas pediam à psicologia que rompesse com o associacionismo, que era universalmente admitido, senão como doutrina, pelo menos como método. Exigiam ainda outra ruptura, que apenas entrevíamos. Ao lado do associacionismo, havia o kantismo, cuja influência, aliás frequentemente combinada com a primeira, era não menos poderosa e não menos geral. Aqueles que repudiavam o positivismo de um Comte ou o agnosticismo de um Spencer não ousavam ir até a contestação da concepção kantiana da relatividade do conhecimento. Kant havia estabelecido, dizia-se, que nosso pensamento se exerce sobre uma matéria espelhada antecipadamente no Espaço e no Tempo e desse modo preparada especialmente para o homem: a ‘coisa-em-si’ escapa-nos; seria preciso, para atingi-la, uma faculdade intuitiva que não possuímos”.

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Immanuel Kant

A crítica feita por Bergson ao kantismo se constitui da aceitação de que o entendimento é uma mediação entre o sujeito e a coisa que determina nossa relação fenomênica com o mundo. Para Bergson, porém, o entendimento determina uma dentre várias experiências por ele não determinadas. Na dissertação “De Mundi Sensibilis atque Intelligibilis Forma et Principiis”, Kant investigara o conceito de tempo e espaço propostos por Newton nos “Philosophiae Naturalis Principia Mathematica”. Nestes principia, Newton parte de dois pressupostos:

  1. a existência per se do espaço (ou seja, a possibilidade de haver espaço vazio e a negação da ideia de que o espaço é acidente e consequência ontológica da relação dimensional entre os corpos), ou seja, uma espécie de anterioridade do espaço às coisas do ponto de vista da natureza física.
  2. que o tempo corre inalteravelmente numa velocidade que não pode ser acelerada nem diminuída independente de todas as coisas, ou seja, uma anterioridade do tempo às coisas.
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Time Smoking a Picture, por William Hogarth. Sugestão de imagem do leitor Gabriel Tossato.

Com estes dois princípios, afirmava-se uma “objetividade” externa do tempo e do espaço, chamados de tempo absoluto e espaço absoluto. O que Kant procura provar na dissertatio e toma como ponto de partida na KrV é que o tempo e espaço newtonianos são, na verdade, categorias da mente humana. Baseado na impossibilidade de se fazer uma representação na qual não haja espaço algum, embora seja possível para Kant – e talvez só para Kant – não representar objeto algum e mesmo assim representar o espaço, Kant infere que o espaço “é, portanto, considerado a condição da possibilidade dos fenômenos e não uma determinação dependentes destes; é uma representação a priori que subjaz necessariamente aos fenômenos externos” (KrV. B39).

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Com bases, também, na mesma maneira como a física newtoniana estabelece sua concepção de tempo, ou seja, na mesma impossibilidade de suprimir o tempo, não obstante a possibilidade – considerada factual por Kant – de se eliminar fenômenos e permanecer com o tempo, extraímos a consequência de que, analogamente ao espaço, o tempo também é uma condição da possibilidade dos fenômenos. Nos termos de Kant, “o tempo é dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos” (KrV, B46), donde a máxima kantiana de que é impossível representar objetos externos sem representar espaço e tempo. Se é impossível representar objetos sem representar espaço e tempo, logo, espaço e tempo são condições necessárias para representar fenômenos externos. E, deste modo, todo âmbito fenomênico estaria fechado à proposta de vivência do fluxo do tempo proposta por Bergson, que propõe que a realidade exterior do mundo também é duração, movimento e duração.


[1] MARITAIN, J. La Philosophie Bergsonienne, Librarie P. Téqui, Paris, 1948 p. 50
[2] BERGSON, Da Multiplicidade dos Estados de Consciência, in Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Edições 70. p.58
[3] ROSETTI, Regina. Movimento e Totalidade em Bergson: a Essência Imanente da Realidade Movente. EdUSP, 2004 p. 116.
[4] J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. In A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968.

2 comentários em “Bergson e o Tempo (2)”

  1. Cara Heloísa:
    Artigo para se ler, reler, ler-reler, reler-ler…
    Mesmo sendo um dos primeiros anti-intelectualistas, Bergson foi muito influente entre intelectuais.
    Há aquela famosa citação de Henry James a Bertrand Russel, numa carta (1908), citada por Eric Voegelin:
    “Minhas palavras para ti são: “Dize adeus à lógica matemática se quiseres preservar tuas relações com as realidades concretas! “Tive hoje de manhã uma conversa de três horas com Bergson, o que talvez justifique esta jaculatória!”
    Voegelin não perdoa Bergson num artigo de 1973, falando sobre o tema “Dos estudos clássicos”, ele detona Sartre, Merleau-Ponty e Henri B.: “O analfabetismo filosófico progrediu tanto que o cerne experiencial de filosofar desapareceu por baixo do horizonte e não é sequer reconhecido como tal quando aparece em filósofos como Bergson. O processo de desculturação o eclipsou tão completamente pela opinião que algumas vezes se pode hesitar até em falar de uma indiferença em relação a ele.”
    Nem por isso, Voegelin deixa de aproveitar os conhecimentos de Henri B (seu conceito de “l´âme ouverte”) para a contextualização da psicopatia (ensaio “Razão e experiência clássica”, 1974) quando diz: “…a realidade expressada pelos símbolos da “Nous” [platônico-aristotélica] é a estrutura na psiquê de um homem que está harmonizado com a ordem divina no cosmos, não de um homem que existe em revolta contra ele; a Razão tem o conteúdo existencial definitivo de abertura para a realidade no sentido em que Bergson fala de “l´âme ouverte”…”
    À suîvre.
    Abraço do Beto.

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