O que torna Cem Anos de Solidão tão apaixonante?
Farrel Kautely
kauty.s@gmail.com
Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez (ou Gabo, como é conhecido na Colômbia), é uma obra indiscutivelmente apaixonante. Se você nutre gosto por consumir literatura, certamente já viu essa afirmação em algum lugar antes. O que não sei é se lhe disseram o que torna a obra tão espetacular, então vou justificar por que concordo com essa galera.
O romance possui dois fortes alicerces: Macondo, cenário de vários eventos fantásticos e trágicos, e os personagens, principalmente as da família Buendía.
Macondo é fundada pelo patriarca José Arcádio Buendía e pela matriarca Úrsula Iguarán como uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio. Começa pequena, mas ao longo da história vai se tornando uma importante cidade para o país. Ali ocorre uma epidemia de insônia que não cansa as pessoas fisicamente, mas parece cansar a memória, fazendo com que se tenha de etiquetar as coisas com seus nomes e funcionalidades (desde chaleiras e martelos a vacas). De vez em quando há visitas ilustres e impressionantes de ciganos, que trazem consigo, além de conhecimento científico, coisas verdadeiramente mágicas, como tapetes voadores e um grande bloco de gelo que não derrete. Por muitos anos é localização importante durante as guerras entre conservadores e liberais e mantém, por um período economicamente próspero, a companhia bananeira.
E temos o outro grande alicerce: os personagens.
Eles são profundos, humanas, verossímeis mesmo que envoltos por acontecimentos fantásticos. Junto a Macondo, permitem construir essa obra que agrada os olhos de tantos e tantas pelo mundo. Não sou colombiano, mas sinto orgulho por uma obra de nossos irmãos sul-americanos mostrar ao mundo que por aqui se sabe fazer excelente literatura.
Mas, claro, eu me propus a justificar, e não só adjetivar agradavelmente.
Sobre os personagens serem tão apaixonantes: É curioso como muitos deles se veem sempre só, mesmo que a família Buendía seja, na maior parte do século, numerosa. Úrsula, por exemplo, morre bem depois de se tornar centenária, e por muito tempo fiquei na dúvida se era ela a mais solitária.
O narrador oferece o íntimo dos personagens para o leitor, o que é quase como nos dar um abraço. Quando estamos diante de seus infortúnios ou dramas, é certo nos vermos refletidos ou representados, em medidas diferentes para personagens diferentes. Não nos sentimos sós quando vemos muito de nossos tormentos pessoais causando o mesmo efeito nos Buendía ou naqueles que interagem com eles ao longo do século.
Capa mítica da primeira edição do livro, feita pelo artista mexicano Vicente Rojo. (Imagem: Reprodução)
Todos os descendentes homens da família Buendía recebem ou o nome de Aureliano ou de José Arcádio. Úrsula, em determinado ponto, reflete que a repetição dos nomes a permitia concluir que “enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os Josés Arcádios eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um signo trágico”.
Úrsula não é a única personagem a ter essa conclusão, como vemos neste trecho:
“Pilar Ternera emitiu um riso fundo, o velho riso expansivo que terminara por parecer um arrulho de pombo. Não havia nenhum mistério no coração de um Buendía que fosse impenetrável para ela, porque um século de cartas e de experiência lhe ensinara que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.”
Meu personagem favorito é o José Arcádio Buendía patriarca, que, a meu ver, tem ambas as características que acompanharam seus descendentes. O patriarca certamente tem espírito empreendedor, e sua tragédia é perder a lucidez. Úrsula me é a personagem mais admirável. A mais forte, talvez a mais solitária, e é quem mantém a lucidez do espírito empreendedor e tempestuoso do marido. É somente por uma ausência sua que ele enlouquece (embora seja questionável se o patriarca perde mesmo o juízo).
O romance promete um século de solidão, e o personagem que hoje creio estar no páreo do mais solitário é o primeiro Aureliano, o Coronel.
Aureliano se vê solitário pela primeira vez ainda jovem, quando seu irmão foge com ciganos, privando-o de sua cumplicidade. Promove dezenas de lutas armadas, tem dezessete filhos com dezessete mulheres diferentes e, depois de todas as desilusões da guerra, se retira à ourivesaria e aceita sua solidão. Tanto Aureliano como José Arcádio patriarca, Úrsula e muitos outros são excelentes exemplos do que podemos chamar de personagens esféricos. De acordo com o descrito por Antônio Candido em seu livro “A personagem de ficção”, personagens esféricos não se limitam a duas dimensões. Possuem três, são organizados com maior complexidade e, em consequência disso, possuem a capacidade de surpreender o leitor de forma convincente. No caso do Coronel Aureliano Buendía, conhecemos intimamente seu espírito, ainda assim nos surpreendemos quando ele decide pegar em armas para a guerra, e seus atos a partir daí, mesmo que muitas vezes nos deixem pasmos, são completamente condizentes com sua personalidade — como quando ordena o fuzilamento de um companheiro de anos de guerra, por exemplo.
Há muito mais motivos para se admirar esta obra incrível. Mesmo que eu tenha revelado muito sobre três dos personagens mais importantes, ainda há muito mais nas demais para surpreender. É por isso que junto minha voz ao coro que indica a obra para todos os que se dizem amantes da literatura.
Vá ler 100 anos de solidão!!!
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