Anna Karenina e Emma Bovary: traições, suicídios e outras virtudes
Princesas russas, czares, trenós, palácios sumptuosos, intriga e amor são ingredientes para empacotar qualquer coisa e vender bem, mas, Anna Karenina consegue sempre escapar à vertigem de ser reduzida a mais uma carinha bonita de Hollywood e continua a ser um romance cósmico que perpetua Tolstoi.
Numa época cheia de ateliers de escrita criativa e instrumentos literários e em que a Literatura, claramente, entra em extinção quer na qualidade de produção, quer no meio de divulgação, o estilo de Tolstoi assombra e desafia: o russo não faz mais do que escrever frases absolutamente diretas, quase como um relatório de um contabilista ou a descrição policial de um acidente rodoviário mas, apesar dessa escrita simples, as páginas voam diante dos nossos olhos, os personagens desfilam, a narrativa avança a um ritmo magistral (doce lentidão) e não se contam nem comparações, nem metáforas, nem malabarismos estilísticos: diz o que é e nada mais do que isso.
Neste “primeiro romance”, como Tolstoi lhe chamava, já que considerava o Guerra e Paz um mero relato épico-histórico, há um hiato difícil de definir entre a voz do narrador omnisciente e os personagens, a esse hiato chamaríamos de “proximidade” narrador-personagem e essa é a arte de Tolstoi ou Proust: contam, sabem tudo, mas os personagens são livres, autores deste tipo dominam a arte da dialética entre a intimidade e o distanciamento com os seus personagens. Jorge Amado dizia que o grande escritor se media pela liberdade que as suas personagens tinham, diria que os deuses fazem as duas coisas ao mesmo tempo: os personagens estão presos ao narrador (e até ao autor) e têm liberdade. Tolstoi prende os personagens na trama para criar um espaço para o autor e contem-se para dar liberdade à interação entre aqueles. É desta dialética que surge a magia da releitura: cada releitura é um novo romance porque a releitura encaixa em outros intervalos entre o domínio do autor e a liberdade dos personagens. James Joyce, Beckett e outros pioneiros modernos vão criar esta dinâmica através do recurso a todo uma maquinaria estilística (em Ulysses, por exemplo, há diversos estilos de escrita) sofisticadíssima e criativa, Tolstoi, com meios absolutamente clássicos, sem recurso praticamente a nada, consegue um efeito muito superior: a linguagem é convencional e os meios são perfeitamente artesanais.
Um dos grandes mistérios do imaginário humano é associarmos os romances de Tolstoi aos cenários principescos quando nos livros as descrições de cidades, paisagens, cenários são reduzidíssimas. Eis a magia de Tolstoi! O que é descrito à saciedade são as ações humanas, qualquer ação humana é descrita com detalhe, do remexer os bolsos, ao tirar cigarros do estojo, já as cidades são praticamente ignoradas e os ambientes campestres são ligeiramente privilegiados. Há um quase efeito de teatro em que se traça com clareza a linha divisória do cenário e dos personagens por isso é tão fácil uma adaptação cinematográfica, só que, para se adaptar ao cinema é preciso virar ao contrário a escala: privilegiar o cenário e colocar os personagens a evoluir nas mesmas – é preciso assassinar Tolstoi para fazer um filme, nada como contratar uma empresa de assassinos como Hollywood para o efeito.
Tudo evolui de forma fluida em Anna Karenina, momentos e ações contradizem a descrição geral dos personagens, não são só os cenários urbanos e campestres que são relegados para segundo plano, é o próprio Tempo, de certa forma, as obras de Tolstoi são uma “Não Busca do Tempo Perdido” (nem ganho), para o autor o tempo é mais ou menos convencional cronológico e dá-se a si mesmo a liberdade de o esticar e encurtar, processo, que, no fundo, é o que a nossa mente faz naturalmente, toda a obra publicada como folhetim tem sempre um “arrastar de pés” narrativo típico de quem se reserva para uma entrada mais animada no capítulo seguinte . Os personagens ora se atrasam, ora se adiantam numa quase valsa de entradas e saídas, não é por acaso que que há tantas adaptações para Ballet. Entram e saem, os vilões são capazes de atos de bondade e os bondosos de vilanias, como na vida, todos trocam momentaneamente de papel para horror do encaixotamento da linguagem cinematográfica.
Anna Karenina sai em busca da aventura perdida, vai se tornar uma heroína de uma épica da traição, a sua conceção de liberdade, o seu espaço de evolução é o mundo das aventuras extraconjugais, o mergulho vertiginoso no vazio da Babilónia que a rodeia e Tolstoi não a julga, nem condena, deixa-a voar como ela entende, mas revê-se em Levin que vai noutra direção: regresso à espiritualidade, redescoberta da família e da vida no campo. Anna é mesmo tratada como uma colega literária, ela também lê romances, entrando assim no conjunto vasto de personagens leitores onde pontificam a rainha das leitoras adúlteras, Emma Bovary, e o fidalgo a quem os romances de cavalaria fizeram tão mal ao seu equilíbrio psíquico, o matricial Don Quixote.
Quando se fala de Anna Karenina, rapidamente é citada Emma Bovary, formando assim uma espécie de grupo em rede social do nosso imaginário chamado o “grupo das traidoras”, essa colagem foi feita assim que Anna Karenina foi publicado, pensou-se que Tolstoi procurava plasmar ou revisitar o grande tema da traição e suicídio. De fato, Tolstoi até estava em França no momento em que Madame Bovary é publicado na Revue de Paris (1856), mas esse fato induz em erro: há diversas entradas nos Diários de Tolstoi que remontam a 1851 em que o autor aborda o assunto obsessivamente – muito antes, portanto, da publicação de Madame Bovary. Tolstoi pretendia escrever sobre o tema e, provavelmente, o suicídio de Anna Stepanova Piriogova, perto do local onde Tolstoi vivia foi o gatilho para que o plano de escrita se concretizasse.
Diversos aspetos e modalidades de evolução no plano da vida aproximam as duas heroínas, ambas são leitoras de romances e ambas são personagens do grande romance que é a sua vida, o que permite a projeção de todos os leitores, todos somos leitores e personagens de alguma história de vida, mas Emma vai ter de vender a alma ao diabo para criar o espaço das suas fantasias já que “todos os dias ela esperava alguma coisa” e nada acontecia, através da ambição, endividamento e traição vai criar uma rampa para se tornar “como os personagens” dos seus livros, ao passo que Anna Karenina tem já toda uma Sodoma e Gomorra à sua disposição, não necessita de criar cenários, de fugir da província, apenas se revê e se reconhece, os romances apenas lhe revelam aquilo que ela já sente, são apenas um espelho mágico que lhe devolve e revela o que já sente.
“Anna Karenina lia e compreendia, mas não tinha prazer em seguir as aventuras de outros. Ela tinha um desejo enorme de viver por si mesma tudo. Se a heroína de um romance cuidava de doentes… ela sentia um desejo súbito de entrar no quarto de um doente e ajudar; se um membro do parlamento pronunciava um discurso, ela queria pronunciar esse discurso ela mesma; se lady Mary seguia numa caçada a cavalo, provocava a cunhada e suscitava admiração pela sua audácia, ela também o queria fazer”.
Lev Tolstoi, Anna Karenina (tradução: Frank Wan).
Já Emma Bovary
“Foi então que ela se lembrou das heroínas dos livros que ela tinha lido e a legião heróica de mulheres adúlteras entoou um cântico na sua memória com vozes de irmãs que a encantavam. Ela mesmo materializava as suas fantasias e realizava os muitos sonhos da sua juventude ao tornar-se no tipo de amante que ela tanto tinha desejado.”
Gustave Flaubert, Emma Bovary (tradução: Frank Wan)
As traições não são mais do que um sintoma, Freud oblige, de mecanismos de autodestruição fortemente ativados, já que a sensação de vazio resulta da depressão e o desejo de “sensações novas e perigosas” através da traição matrimonial não é mais do que a busca da morte perdida, um desejo de morte não elaborado, o novo entusiasmo provisório antes da próxima desilusão, já que o inferno são os outros. Emma Bovary vai deixar de “esperar todos os dias alguma coisa que nunca vem” para atingir a felicidade eterna e Anna Karenina mimetiza o suicídio de um operário atirando-se para a linha férrea, suicídio esse que ocorreu no dia em que conheceu o futuro amante na estação ferroviária. Chegaram, assim, as duas ao destino inconscientemente desejado.
Praticamente toda a literatura e arte em geral posterior é alguma variação da obra de Tolstoi, o que torna a listagem impossível, sinalizando apenas pequenos exemplos: se se virar as proposições de Tolstoi ao contrário, temos todo a obra de Nabokov; a Busca do Tempo Perdido, em parte, obviamente, é uma transposição para Paris e para a burguesia parisiense das idas e vindas das famílias de elite russas, quem o diz é Proust; se se juntar as tensões e todos os personagens ao mesmo tempo da obra de Tolstoi e se lhe der um cunho cómico e cinematográfico, temos praticamente toda a obra de Woody Allen.
Extraordinário! bom de ser lido e relido…
Frank: “Anna Karenina lia e compreendia, mas não tinha prazer em seguir as aventuras de outros. Ele tinha um desejo enorme de viver por si mesma tudo. Se a heroína de um romance cuidava de doentes… ela sentia um desejo súbito de entrar no quarto de um doente e ajudar; se um membro do parlamento pronunciava um discurso, ela queria pronunciar esse discurso ela mesma; se lady Mary seguia numa caçada a cavalo, provocava a cunhada e suscitava admiração pela sua audácia, ela também o queria fazer”.
— Há um “ele” que é ela, neste parágrafo…
Corrigido, Beto. Obrigado pela leitura atenta!
Obrigado, Cássio
Obrigado, Adalberto, abraço
Excepcional, Frank, você sempre luxuosíssimo. Admiráveis as duas, suas escolhidas. Mulheres que me (nos) fortaleceram o feminino. Um pouco diferente, mas intensas iguais, deu muita vontade de te ouvir (ler) falar de Olga Benário Prestes. Abraço, meu caro. Parabéns sempre.