Ilustres desconhecidos da poesia brasileira: Lucila Nogueira
Lucila Nogueira, nascida no Rio de Janeiro em 1950, foi uma das vozes mais fortes e originais da poesia brasileira contemporânea. Passou a maior parte da sua vida em Recife, onde, além de ter trabalhado como tradutora, lecionou diversas disciplinas de literatura e de crítica literária. Ademais, publicou seu primeiro livro, Almenara, em 1978 – obra longe de ser imatura – uma vez que foi agraciada, já no ano seguinte, com o Prêmio Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco.
Ao longo dos poemas, a escritora passa rapidamente pelo aspecto social e pela infância, mas seu grande tema consiste nas questões transcendentes do espírito humano, atingindo, não raro, o plano metafísico.
A Transcendência, o onírico e o misticismo, elementos já presentes em Almenara, consolidam-se em seu oitavo livro, Zinganares (1998), que terá como essência o premonitório. A obra consiste em 45 cantos de quatro quartetos de versos decassílabos em que se acrescenta um dístico final. Nas primeiras páginas, encontra-se um eu-lírico materializado numa espécie de oráculo que adverte o leitor do seu poder divinatório:
o que vejo nas almas eu escrevo sob a forma de enigmas fatais com adivinhações inacessíveis à lógica empirista dos mortais (NOGUEIRA, 1998, p. 10)
Além disso, é contemporâneo de civilizações antigas:
[...] sacerdotes caldeus deram-me um livro na cidade de Elo e eu compreendi essa doutrina que não foi escrita precursora dos sábios de Saís (NOGUEIRA, 1998, p. 16)
Apesar de fazer referências a povos antigos, essa “entidade mística” transcende o tempo (eu sou a mais antiga e a mais moderna/ narração de teu rumo sobre a terra) (NOGUEIRA, 1998, p. 12) e o espaço (Sou capaz de viver em vários planos/ metáfora das deusas que vivi) (NOGUEIRA, 1998, p. 15).
É importante salientar que essa “voz”, mesmo assumindo várias faces, é essencialmente feminina. Isso fica claro em passagens como sou a ordem do mundo e do destino/ metade humana sou metade deusa (XVIII) ou sou a mãe sem consorte, a mãe primeira/ num seio acolho o sol, no outro a lua (XXII). Em outro momento, a poeta enaltece uma espécie de “sagrado feminino”, afirmando que compreender as deusas do passado/ é celebrar a força das mulheres. Além disso, há, ao longo da obra, o uso recorrente de pronomes femininos e de referências a personagens mulheres.
Conforme aponta o crítico e poeta Ângelo Monteiro (2012), a poesia de Lucila Nogueira está longe de ter como essência o engajamento excessivo ou a supervalorização do fator histórico; a riqueza de suas referências, signos e imagens está muito mais para o instintivo, o espiritual e o místico do que para o racional e o científico. No canto VII, a poeta revela a “chave” para adentrar esse universo mágico:
Esta palavra beira o precipício mas ninguém solta o livro sobre o altar benedicte malkpeblis benedicte e o poema é a senha para entrar esta palavra beira o sacrifício mas dá disposição para voar uso divinatório de um zodíaco e o poema é a senha para entrar (NOGUEIRA, 1998, p. 15)
O eu-lírico transcende não só o espaço e o tempo, mas a própria linguagem; a palavra, beirando o precipício, excede seus limites semânticos, dando lugar à sugestão, também evocada pelo ritmo e pela obscuridade dos versos. O sentido comum é sacrificado em prol das significações que o próprio leitor dará ao texto; esse processo, finalmente, resultará uma atmosfera onírica e mística, própria da poeta (e também do leitor), tendo o poema como “senha” de entrada para a sua poesia.
Outro elemento marcante em Zinganares é a mitologia. Em um mesmo canto (XVI), a poderosa “entidade” presente no poema derrota seres como os leões de Neméia, as hidras de Lerna e Cérbero, o famoso cão de três cabeças, afirmando, no dístico final, que – em vez de destruir-me só fizeram/ a força dos gigantes me temer (NOGUEIRA, 1998, p. 24).
Ademais, conforme já mencionado, o sonho, ao lado do misticismo, é um dos pilares de toda a obra de Lucila, ganhando destaque no livro em questão:
Tão nítido é o sonho que me acorda e as imagens agarram-se nos dias a memória das coisas me acompanha no coração que bate sem medida (NOGUEIRA, 1998, p. 21) a matéria a memória ou a magia o tempo e o espaço perdem seus limites absurdo abstrato abstraído da imagem mais concreta deste mito (NOGUEIRA, 1998, p. 22)
Além de místicos, seus versos também são ritualísticos, quase sempre carregados por uma atmosfera sagrada. Em um dos mais belos cantos do livro (XXXV), a poeta, após invocar uma espécie de musa, ou, nas suas palavras, a deusa anterior ou mãe sagrada, finaliza tentando definir o que é poesia, tarefa sempre difícil: – poesia é uma saudade de outra vida/ batendo nos portais da eternidade (NOGUEIRA, 1998, p. 43).
Por fim, o último canto (XL) mostra a “vidente” já desgastada e cética de si mesma; após usar sua capacidade divinatória, incorporar deusas e destruir seres poderosos, o eu-lírico questiona sua própria identidade e a autenticidade de sua história:
Uma pedra ou mimese involuntária?
Uma estátua ou o espelho em que flutua?
Simulacro ou ser de uma outra raça
Paralela ou perpétua testemunha?
Houve um dia esse povo transparente
sem contornos, sem rastros e sem sombra?
Houve a dama que lia o pensamento?
Seu olhar atrasava a morte humana?
Em que casa guardaram minha imagem?
Que parede esquecida me emoldura?
Eu sou eu ou a outra que pergunta
Me olhando em seu perfil desde qual vulto?
Serei eu o pedaço de um vestido
rasgado a cada século do mundo
Ou serei esse espaço colorido
de um xadrez que em segredo eu reconstruo?
– Serei eu um espelho unificado?
Serás tu a matriz da semelhança?
Para este ensaio, selecionamos integralmente mais cinco cantos de Zinganares :
IV Eu sou a mão nascida que não morre sonhando sonhos sobrenaturais daimon sobrevivente nos relógios da quarta dimensão querendo paz consciência alterada do invisível cumprindo o seu papel premonitório a revelar os mundos esquecidos de um texto concebido em hipnose trago o poder perdido nas pirâmides do México e do Egito e nos degraus de cada zigurate eu entro em transe para curar doentes terminais eu sou a mais antiga e a mais moderna narração de teu rumo sobre a terra recital visionário de crateras revelação que arrasta o que revela – eu sou a mão nascida que não morre sonhando sonhos sobrenaturais IX Posso ver outros mundos desta sala vida e morte no vão desta janela um crâneo de cristal mudou meus sonhos como um rádio ou antena de satélite com a mente alterada pela cura as almas congeladas observo semen de divindades mais ocultas do que as revelações dos teus profetas vejo a pedra crescendo pela casa brilhando na penumbra transparente uma energia corre em minhas órbitas cem mil anos convivem num reflexo clara essência de deuses esquecidos no espelho giratório de teus gestos um crâneo de cristal mudou meus sonhos fez meus olhos canais de outro universo – posso ver outros mundos desta sala vida e morte no vão desta janela XXI Cheguei de Tiro como clandestina eu vim fundar escolas de profetas escuta os meus presságios neste livro o tom premonitório dos meus versos eu quis viver milênios e prossigo sem terminar meu tempo sobre a terra eu quis viver milênios. E hoje sinto a solidão de quem não se despede e o que os astros desenham eu decifro aspirando o vapor da humana febre sou a memória do teu mimetismo sou a saudade anônima da pele sou instrumento de teu desafio sou testemunha do teu pranto eterno cheguei de Tiro como clandestina eu vim fundar escolas de profetas – escuta os meus presságios neste livro o tom premonitório dos meus versos XXVI Decifra esta charada do deserto que eu indago por vinte e quatro séculos desvela o meu caminho e então celebra a regressão das coisas encobertas Argantonio encantou-me nesta pedra como castigo por paixão de Hércules e a púrpura do manto que carrego há milênios derramo em tua pele decifra o meu silêncio desde a Atlântida resgata a embarcação que te persegue nas girândolas míticas de Thera onde afrescos de fogo me repetem Teseu lutando contra o Minotauro nesta praça de sonho se sucedem e a morte serpenteia embriagada pelos fios da capa da donzela – decifra esta charada do deserto que eu indago por vinte e quatro séculos XXXVIII Se não houver a morte que inventamos e a vida continue em outra vida então esses fantasmas que chamamos são a saudade da matéria antiga uma energia presa na parede movendo-se na paz dos objetos uma luz prateada no arvoredo onde as fadas contemplam nosso medo e se formos projetos de outro plano por um simples cordão preso à ferida então por isso sempre recordamos fatos estranhos dentro da rotina e se eu for essa mesma do outro lado sonhando retornar mais invisível e se ela for apenas um recado na pele seguidora dos meus dias – então serei somente o desengano de clones milenares sem saída
No que se refere à edição, consta que foi composta e impressa em Portugal, pela editora Árion. A textura da parte externa é próxima à do papel vergê. A ilustração da capa, bastante primorosa e coerente com o estilo da autora, foi feita por Luis Manuel Gaspar, importante artista plástico português. Quanto à disponibilidade em livrarias e alfarrabistas, a obra encontra-se esgotada.
Lucila Nogueira morreu em 25 de dezembro de 2016, no Recife, em virtude de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Em 2020, completaria 70 anos.
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