Ci: A garota papo firme

Verônica Daniel Kobs

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Como estamos próximos das comemorações do Dia Internacional da Mulher, tive a ideia de retomar Ci, personagem da rapsódia macunaímica de Mário de Andrade. Entretanto, apesar de, na obra modernista, já encontrarmos muitas características surpreendentes no perfil de Ci, meu interesse maior é na heroína urbana, recriada por Joaquim Pedro de Andrade no filme Macunaíma (BRA, 1969). Embora o longa tenha sido lançado há mais de 50 anos, é possível enxergarmos em Ci vários indícios notáveis de crítica ao machismo, ao sexismo e aos estereótipos de gêneros.

Em 1969, ano de lançamento do filme, o AI-5 já estava em vigor. Isso fez com que a versão apresentada para o público acumulasse muitos cortes. Apenas em 1985 o conteúdo omitido foi liberado, fazendo com que o longa pudesse ser exibido na íntegra e em censura livre, nos cinemas; e após as 22 horas, na TV. Considerando o fato de a produção fílmica ser uma adaptação, as comparações com o livro de Mário de Andrade são inevitáveis. Aliás, no texto literário, a referência à migração é uma constante, embora ocorra de modo mais sutil que no filme: “— Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro” (ANDRADE, 2001, p. 28). Macunaíma desejava ampliar seus horizontes e queria o mesmo para o filho. O filho não pôde realizar o desejo do pai. Apenas Macunaíma e seus irmãos tiveram essa oportunidade. Tal passagem, que, no texto literário, aparece logo no começo, no filme é adiada. Na versão de Joaquim Pedro de Andrade, Ci pertence à cidade. De modo inverso, no texto modernista, quando Macunaíma chega à cidade, ele já havia perdido o filho e também Ci, que tinha virado uma estrela, transformando-se na Beta do Centauro. Exatamente por isso, no livro, Ci acompanha o herói, no momento em que ele cruza a fronteira, em busca do mundo civilizado da grande metrópole.

A alteração feita pelo diretor era necessária para inserir Ci no contexto da ditadura e da guerrilha urbana. No momento em que ela surge, no filme, os irmãos estão em uma rua deserta e silenciosa. O medo e o toque de recolher impediam que as pessoas transitassem pelas ruas. No entanto, a ingenuidade dos personagens não os deixa perceber isso, razão pela qual o narrador afirma: “Macunaíma percebeu que estava livre outra vez e foi passear com os manos” (MACUNAÍMA, 1969, grifo nosso). A fala, acentuadamente irônica, menciona a liberdade, condição suprimida pela ditadura. A inocência de Macunaíma é tanta que serve de instrumento para o diretor driblar a censura, porque o passeio, que parece agradável ao protagonista, inquieta o espectador, já que o ambiente que cerca os personagens não condiz com a ideia de lazer ou diversão. A cidade está sitiada, não há ninguém em volta deles, todos os estabelecimentos e as casas estão fechados. Mesmo assim, só o espectador espera pelo pior, que de fato acontece. Os irmãos são surpreendidos por sons de explosão, tiros de metralhadora e apitos. Apenas nesse instante a referência à ditadura torna-se mais evidente. É justamente quando Ci aparece, armada, como uma típica guerrilheira urbana, e mata todos os homens que a perseguiam, em uma Kombi (Figs. 1, 2 e 3).

Ci: A garota papo firme 1
Ci saindo da Kombi, após matar todos os homens que a tinham perseguido.
Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HB52EyGghho
Ci: A garota papo firme 2
Quando Ci sai do veículo, ela está carregando um braço. Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HB52EyGghho
Ci: A garota papo firme 3
Observada por Macunaíma e pelos irmãos dele, Ci joga o braço no chão e pega as armas. Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HB52EyGghho

Nessa sequência demonstrada pelas imagens, Ci, representada pela atriz Dina Sfat, encaixa-se perfeitamente na atmosfera política e no contexto histórico que predominam na produção cinematográfica. Vestindo jeans e tênis, Ci representa evolução, civilização, exalando modernidade. Ci é pop. Além disso, ela tem iniciativa própria, é altiva e independente e, exatamente por isso, nas cenas em que ela comete os vários assassinatos dentro da Kombi, o pano de fundo é um dos sucessos da Jovem Guarda, movimento musical que lançou o Iê-iê-iê:

 Essa garota é papo firme, é papo firme, é papo firme
Ela é mesmo avançada e só dirige em disparada
Gosta de tudo que eu falo, gosta de gíria e muito embalo
 
Ela adora uma praia e só anda de minissaia
Está por dentro de tudo e só namora se o cara é cabeludo
 
Essa garota é papo firme, é papo firme, é papo firme
Se alguém diz que ela está errada, ela dá bronca, fica zangada
Manda tudo pro inferno e diz que hoje isso é moderno. (CARLOS, 2020)

Retomando a data de lançamento do filme, verificamos que há estreita relação entre o perfil de Ci e o da “garota papo firme”. A mulher da música de Roberto é “avançada”, amante da velocidade, não admite ser contrariada e subverte os padrões, elegendo a minissaia (“só anda de minissaia”) e o cabelo comprido (“só namora se o cara é cabeludo”) como símbolos de sua rebeldia. Durante anos, no Brasil, um dos ícones da juventude foi Celly Campello. Porém, tudo mudou no ano de 1965, na transmissão de um dos episódios do programa Jovem Guarda (da rede Record), que animava as tardes de domingo. Na ocasião, Wanderléa, a verdadeira garota papo firme, foi apresentada ao público:

Ela encarna a imagem da mulher ativa, liberada, meiga e sensual. De fato, essa imagem passa a ser veiculada como o perfil da mulher idealmente liberada que irá competir no plano social pela sua inserção no mercado de trabalho. Wanderléa, ao mesmo tempo que rompe com os padrões comportamentais, mistura a moral arcaica e familiar com essa imagem.  (SEVERINO, 2002, p. 226)

Por esse motivo, pode-se dizer que a Jovem Guarda evoluiu para acompanhar as mudanças fundamentais que marcavam o contexto sociopolítico:

Curiosamente, ela dava forma, no Brasil, àquilo que os rebeldes do Maio de 68 em Paris (e em outros centros) reivindicavam: o direito de falar, gritar e cantar discursos provindos da própria experiência, ultrapassando as palavras-de-ordem emitidas da exterioridade idealizante das ortodoxias de esquerda. E para os nossos primeiros roqueiros, a “revolução” que se queria era a da festa do corpo, a liberação e expansão dos limites da sexualidade […]. (MEDEIROS, 2006, p. 5, grifo no original).

Desde o momento em que Macunaíma e Ci encontram-se, no filme de Joaquim Pedro, essa ânsia de liberdade é o que caracteriza a personagem feminina (feminina?). Para reforçar esse traço, o diretor coreografa algumas cenas, que mostram Ci em posição dominante (Figs. 4 e 5), estabelecendo sua superioridade em relação ao malfadado herói:

Ci: A garota papo firme 4
Quando Ci e Macunaíma se conhecem, ela o joga no chão, imobilizando-o por completo. Imagem disponível em: https://rockontro.org/2014/07/17/macunaima-modernismo-e-tropicalismo-no-cinema-novo/
Ci: A garota papo firme 5
Já casados, Ci seduz o marido, levando-o para a cama: ela está totalmente nua, enquanto Macunaíma usa um penhoar. Imagem disponível em: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcQCpa2fyJnToEUaEJXk281Z48Pvcsn2fbDc_uVP9OR3MEGmTufS

Além da postura e do gestual, há o figurino, que não apenas combina com o jeito de ser da tal “garota papo firme de que o Roberto falou”… As roupas de Ci são emprestadas da moda masculina (Fig. 4), que só tardiamente foi adaptada e passou a fazer parte, de fato, do guarda-roupa das mulheres.

Para se ter uma ideia, em 1800, entrava em vigor em Paris uma lei determinando que as mulheres que usassem calças em público podiam ser presas pela polícia. Era permitido usar calças apenas com autorização prévia da polícia. Em 1930, a lei foi aplicada pela última vez, quando comitê olímpico francês retirou as medalhas da atleta Violette Morris pela insistência dela em usar calças. Em 1892 e 1909 a lei sofreu emendas que permitiram que as mulheres usassem a peça apenas se estivessem de bicicleta ou a cavalo. (RASPANTI, 2020)

Especialistas da moda apontam a década de 1960 como período áureo do jeans, tanto para os homens quanto para as mulheres: “No meio de uma revolução cultural tumultuada, o denim se torna uma peça básica nos guarda-roupas femininos. O jeans surge como um ícone da rebelião que é adotado por homens e mulheres” (PROPMARK, 2020). Antes disso, a exceção foi feita às mulheres que, “depois da Primeira Guerra Mundial (1914–1918), […] tiveram que trabalhar fora de casa para sustentar a família. Com a mudança de atividades, o vestuário precisou se adaptar aos novos movimentos, colocando os longos vestidos em uma posição nada funcional” (PROPMARK, 2020).

Inicialmente, o tecido usado na fabricação do jeans, conhecido como denim (ou brim, conforme o termo em português, língua que seguiu a origem francesa da palavra e da peça do vestuário, já que as calças jeans foram cridas pela marca Levi Strauss & Co.), foi relacionado “aos discursos de ‘Igualdade, Fraternidade e Liberdade’ da França Revolucionária”, porque “se assemelhava muito ao tecido dos nobres, porém, com um valor muito menor”, aproximando “o ‘homem comum’, ao nobre e seu status quo, contra o qual se dirigia a Revolução” (ALEXANDRE, 2020, grifo no original).

A revolução de Ci não se estabelece apenas na luta armada. Ela também inverte os padrões, ao questionar e subverter os estereótipos de gênero: “A mulher modelo desenvolvida pela cultura de massa tem a aparência da boneca do amor. […]. A boca perpetuamente sangrenta, o rosto pintado seguindo um ritual são um convite permanente a esse delírio sagrado de amor […]” (MORIN, 2002, p. 141, grifo no original). Contrariando essa perspectiva, a Ci idealizada por Joaquim Pedro é sujeito (e não objeto). É ela quem seduz e também é ela quem decide quando precisa de sexo. Sendo assim, percebemos que a atmosfera de um “delírio sagrado de amor” desestabiliza-se por completo. Por fim, é preciso lembrar que o único tom que tinge a boca de Ci é o vermelho-sangue, depois do massacre na Kombi (Fig. 1).

Durante o dia, Ci saía para guerrearna cidade, enquanto Macunaíma ficava descansando. Além disso, depois do parto, quem fica de resguardo é Macunaíma. No livro, de modo inverso, por ter conseguido se aproximar de Ci e por ter sido aceito por ela, o herói é saudado como “o novo Imperador do Mato-Virgem” (ANDRADE, 2001, p. 26). Excetuando isso, a força e a autossuficiência de Ci também são exaltadas pelo escritor, pois ela “comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas” e, à noite, “chegava rescendendo resina de pau, sangrando das brigas” (ANDRADE, 2001, p. 26). Voltando ao filme, outro fator que corrobora a sobreposição de Ci em relação ao herói é a caracterização do ambiente em que ela vive: a cidade e sua casa, com cores quentes, vibrantes e contrastantes nas paredes (Figs. 6 e 7). “Se no texto Ci trançou uma rede com os fios do cabelo e o enfeitiçou, no filme a Ci moderna trança uma rede com notas de dinheiro. […]. O feitiço na cidade tem outro nome […]” (HOLLANDA, 2002, p. 78).

A superioridade de Ci também é devida ao mito das Amazonas, usado por Mário de Andrade e aproveitado por Joaquim Pedro, para as referências à ditadura que permeiam a adaptação dirigida por ele. Junito Brandão baseia-se nos estudos de Johann Jakob Bachofen, filólogo suíço do século XIX, para explicar o mito das Amazonas e sua relação com a matrilinhagem:

[…] o estudioso suíço concluiu que, em épocas muito remotas, as relações sexuais eram promíscuas e, por isso mesmo, somente era indiscutível o parentesco matrilinear. Sabia-se quem era a mãe, jamais o pai. Desse modo, somente à mulher se poderia atribuir a consanguinidade. Ela, unicamente ela, era a autoridade, a legisladora: governava tanto o grupo familiar como o social. Tratava-se da ginecocracia, o poder, o governo da mulher. Tal supremacia era expressa não apenas na esfera da organização social, mas ainda e sobretudo na religião. (BRANDÃO, 2000, pp. 230-1)

No caso das experiências da Ci de Joaquim Pedro, esse predomínio da mulher sobre o homem não atingia a esfera religiosa, mas a política. A emancipação da mulher marcou época em 1970, década em que o feminismo ressurgia, com força total. Isso justifica o fato de o diretor ter investido tanto nesse personagem. Claro que outras relações entre Ci e as amazonas são possíveis, o que dá maior respaldo para as mudanças feitas por Joaquim Pedro, no perfil da heroína. De acordo com Bachofen, a ginecocracia teve três fases: o heterismo, o amazonismo e o demetrismo. A segunda fase é a que interessa diretamente a esta análise, pois o amazonismo “é o estágio agressivo da mulher, uma espécie de imperialismo feminino” (BRANDÃO, 2000, p. 231), conceito que se adapta perfeitamente ao personagem remodelado por Joaquim Pedro de Andrade. No longa, Ci e Macunaíma fundam uma nova ordem, que exigia a redistribuição dos papéis. De modo a acentuar a crítica ao sistema do patriarcalismo, as funções associadas ao homem e à mulher não são apenas questionadas; elas são trocadas, em uma representação completamente avessa à moral e aos bons costumes da época. Seguindo esse mesmo caminho, vale lembrar que, na mesma época, em 1970, a escritora brasileira Hilda Hilst publicava o livro Fluxo-floema, que traz uma passagem específica, da história de Osmo e Mirtza, e na qual o casal também é representado de forma contumaz — e invertida:

[…] não sei por que a Mirtza me chamava de Osmo porque Osmo é um nome finlandês e a Mirtza era lituana e eu não sou finlandês, bem, não importa. […]. Aí eu falava, falava, e nas primeiras noites ela ouvia o que eu falava, depois ela queria fazer amor e eu fazia amor direitinho e tudo o mais, mas eu queria continuar falando depois. Comecei a compreender que a Mirtza só me ouvia antes de fazer amor, e então pensei: essa mulher é uma vaca […]. (HILST, 2003, p. 92-93)

No trecho acima, o antagonismo está demonstrado no comportamento do homem — pois é ele quem fala, quem faz questão de ser ouvido e quem age como objeto de desejo, “fazendo amor direitinho” — e no perfil da mulher, que ouve as conversas de Osmo apenas por interesse, afinal ela só pensa em sexo. Sem dúvida, não há melhor companhia para Ci do que Mirtza, nesse processo de questionamento e crítica ao establishment.

No filme de Joaquim Pedro de Andrade, essa inversão se dá de muitas maneiras. Na cama ou nas ruas, Ci reina, absoluta. Ela fabrica bombas caseiras, está sempre cheirando a pólvora e mora em um lugar que, a julgar pela fachada e pela localização, lembra um aparelho típico — velho, isolado, amplo e com aspecto residencial — acima de qualquer suspeita. Outro aspecto relevante é o linguajar da personagem, marcado por gírias que eram bastante comuns durante a ditadura. Exemplo disso é que, em certa ocasião, ela chama Macunaíma de “alcaguete” (MACUNAÍMA, 1969). Além disso, há o figurino: calças e camisão jeans (Figs. 1 a 4) e roupas de couro (Figs. 6 e 7), que dão maior poder e representatividade ao personagem, que se despe da feminilidade estereotipada para propor um novo perfil de mulher. Desse modo, até o figurino contribui para a associação de Ci com as Amazonas, que “sacrificavam sua feminilidade, mutilando […] um dos seios, […] para combater como um homem em sua luta com o masculino pela independência […]” (BRANDÃO, 2000, p. 232, grifo nosso). A essa característica, Mário de Andrade também faz menção: “[…] pelo peito destro seco dela […] a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua […]” (ANDRADE, 2001, p. 25).

Nas cenas que acompanham a sequência representada abaixo, Ci se prepara para sair, levando o filho e uma bomba caseira a tiracolo, enquanto Macunaíma fica inerte, em casa, descansando em uma rede.

Ci: A garota papo firme 6
Ci, em sua cozinha/laboratório, prepara a mamadeira do filho e uma bomba-relógio caseira, usando apenas sapatos de salto, saia de couro e um colar. Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HB52EyGghho
Ci: A garota papo firme 7
Ci, que tem quadros e uma metralhadora pendurados na parede, prepara-se para sair: sem sutiã, ela veste apenas um colar, com sapatos de salto, saia e jaqueta de couro. Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HB52EyGghho

A simbologia das roupas de couro acompanha a independência e a militância de Ci. Nos anos 1960, o couro passou a ser usado na moda unissex, o que representou uma grande conquista para o público feminino, em uma espécie de abertura à igualdade em relação ao gênero masculino. Conforme Renata Piza (2020), originalmente a jaqueta de couro foi idealizada para os homens da aviação, no estilo Bomber. Depois disso, durante a Primeira Guerra, o designer Irving Schott  lançou uma variação: o modelo Perfecto, que uma década mais tarde tornou-se a jaqueta oficial da marca Harley Davidson.

Posteriormente, em 1970, o couro foi marca da androginia, tendência de moda e de comportamento que foi decisiva na revisão dos estereótipos de gênero. No mesmo período, em Londres, surgiu o movimento punk, cujos adeptos abusavam do couro, da cor preta e dos acessórios de metal. Essa relação é bastante significativa, pois nos ajuda a entender o alto nível do caráter transgressor de Ci, afinal o punk rock teve como principais características “a indignação, a autoexpressão e a experimentação” (ETIQUETA ÚNICA, 2020). Esse indício de rebeldia correspondeu às roupas de couro também em outras épocas. Em 1950, por exemplo, as pessoas vestiam couro para reagir ao elitismo: “Nos anos 1950, quando a maioria das pessoas usavam conjuntos de alfaiataria durante o dia, era considerado rebeldia usar jaqueta de couro” (CAROL CAMILA, 2020).

Sendo assim, por todas as razões que apresentamos aqui — e que abrangem as relações de Ci com a política, com a moda, com a Jovem Guarda e com o mito das amazonas — a personagem de Joaquim Pedro de Andrade (e também a de Mário de Andrade, mas em menor grau) representa um grito contra a ordem estabelecida. O perfil de Ci, no filme, questiona a construção social dos gêneros e as atribuições de papéis, que serviam para moldar homens e mulheres, garantindo que eles se encaixassem, respectivamente, em uma categoria única: masculino ou feminino. Outra conquista do filme é que o perfil estabelecido para Ci colabora com o processo de dissociação entre os conceitos de gênero e sexo:

A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. (BUTLER, 2003, p. 24, grifo no original)

Considerando esse aspecto, Ci ultrapassa, e muito, o contexto do feminismo. A heroína de Joaquim Pedro de Andrade vai além, já que não luta apenas pela independência feminina, mas pela independência do país, igualando-se aos homens, ou mesmo superando-os, para reagir à censura e à opressão — da ditadura e da sociedade patriarcal. Portanto, em homenagem a Ci, podemos todos cantar, junto com o Rei, em uníssono:

Essa garota é papo firme, é papo firme, é papo firme
Se alguém diz que ela está errada, ela dá bronca, fica zangada
Manda tudo pro inferno e diz que hoje isso é moderno. (CARLOS, 2020)

Ci: ontem e hoje, mais viva do que nunca!

REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. de. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2001.

ALEXANDRE, R. Conheça a história do jeans: uma das peças de roupa mais populares do mundo. Disponível em: <https://webinsider.com.br/a-historia-do-jeans/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

BRANDÃO, J. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2000.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARLOS, R. É papo firme. [Letra transcrita do arquivo de áudio disponibilizado no site]. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/roberto-carlos/48583/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

CAROL CAMILA. Jaqueta Liziane Richiter couro pelica de cabra detalhes cordão e nervura. Curiosidades sobre a história do couro. Disponível em: <https://carolcamila.com.br/jaqueta-liziane-richiter-couro-pelica-de-cabra-detalhes-cordao-e-nervura>. Acesso em: 27 fev. 2020.

ETIQUETA ÚNICA. Um giro pela fascinante história da moda. Disponível em: <https://www.etiquetaunica.com.br/blog/um-giro-pela-historia-da-moda/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

HILST, H. Osmo. In: _____. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2003, p. 73-106.

HOLLANDA, H. B. de. Macunaíma da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

MACUNAÍMA. Direção de Joaquim Pedro de Andrade. Brasil: Filmes do Serro, Grupo Filmes, Condor Filmes; Difilm, 1969. 1 DVD (108 min); son.

MEDEIROS, P. T. C. de. A brasa da Jovem Guarda ainda arde. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br>. Acesso em: 27 fev. 2020.

MORIN, E. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

PIZA, R. Clássicos reserva: jaqueta de couro. Disponível em:

<http://revista.usereserva.com/2016/07/29/classicos-reserva-jaqueta-de-couro/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

PROPMARK. Calça jeans feminina comemora 80 anos. Levi’s foi a pioneira e lançou a primeira coleção para as mulheres. Disponível em: <https://propmark.com.br/anunciantes/calca-jeans-feminina-comemora-80-anos/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

RASPANTI, M. P. A calça comprida e a emancipação feminina. Disponível em:<https://historiahoje.com/a-calca-comprida-e-a-emancipacao-feminina/>. Acesso em: 27 fev. 2020.

SEVERINO, F. E. S. À beira do caminho: a Jovem Guarda prepara a mudança social. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~psicopol/pdfv2n4/Capitulo%202.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2020.

* Este texto foi baseado em um brevíssimo excerto da tese intitulada Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD, defendida em 2009, na UFPR.

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