As razões da literatura

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Com a tecnologia que conhecemos hoje, a literatura ganhou um espaço que, sem dúvida, possibilita maior equilíbrio entre arte e cotidiano (Fig. 1). O ciberespaço torna acessíveis alguns tipos de arte que antes eram para poucos, assim como facilita o acesso às expressões artísticas mais populares, como música, cinema e literatura. Trilhas sonoras, shows, clipes, filmes e livros são oferecidos aos internautas — e muitos deles são gratuitos. Além disso, a Internet ajuda a acentuar a dissolução das fronteiras que, hoje, impulsiona as relações interartísticas e promove a relativização da hierarquia que existia, antes, entre autor e leitor e também entre crítica e público.

As razões da literatura 1
Figura 1: A literatura na era cibernética. Imagem disponível em: https://www.collegedekho.com/articles/digitization-of-education-in-india/

No ciberespaço, a leitura, a autoria e a crítica são atividades mais democráticas, realçando a participação de profissionais amadores (leitores, e fãs, aspirantes a críticos ou a escritores). Evidentemente, essa mudança é bastante significativa e pode estabelecer resultados bastante distintos. Por um lado, a Internet pode garantir, em certa medida, um perfil mais especializado de receptor. Dessa forma, o espaço virtual passa a ser uma vitrine cobiçada não apenas por artistas e críticos de renome, mas também pelos internautas, que, em termos logísticos, têm igualdade de condições para expor ideias, lançar um livro ou publicar um texto. Segundo Fernando Ceylão: “A tecnologia permitiu que se concretizassem as profecias (…) de Coppola, (…) Andy Warhol e (…) George Orwell. Hoje, somos todos documentaristas de nós mesmos; fotógrafos, articulistas, personagens de reality shows e humoristas” (CEYLÃO, 2017, p. 90). Em termos práticos, essa mudança pode ser exemplificada com a crescente publicação de resenhas e textos literários, por críticos e autores “não profissionais”, em sites e blogs que privilegiam tanto a escrita quanto o formato videográfico. Tânia Porto enfatiza essa autonomia como decorrência da tecnologia e da comunicação global: “Uma relação interativa com os meios permite ao usuário assumir o papel de sujeito” (PORTO, 2016, p. 4). Nesse sentido, o leitor/espectador assumiu o status de crítico. Sem dúvida, essa transformação gerou uma crise na crítica e nos veículos especializados e apresenta pontos positivos e negativos. Por um lado, isso representa uma conquista, garantindo o acesso público e irrestrito a todos os usuários da grande rede e estabelecendo um novo tipo de democratização, resultante não apenas da Internet, mas também do computador e do smartphone como hipermídias. Entretanto, há uma desvantagem, que, apesar de ser ainda um tema bastante controvertido, precisa ser apontada:

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A invasão do senso comum nas mídias (…) faz com que os valores que dão origem à obra de arte fiquem distorcidos. (…). Essa visão empobrecedora coloca a arte sob a dependência de fatores extra-artísticos, como os valores moral, histórico, civil, religioso daquilo que a obra representa (…). (SILVA, 2020)

Diante desse contexto atual, de reconfiguração, vale destacar as palavras de Hans Gumbrecht, que anunciou o fim da crítica especializada, em um futuro próximo, argumentando que, em geral, a crítica artístico-literária acaba por afastar público e obra, em vez de aproximá-los (GUMBRECHT, 2019a). Essa fala do teórico alemão coincide com a percepção de Sousa Dias, para quem a função básica da crítica é: “Criar público. Promover o encontro possível entre a obra de arte e o(s) seu(s) público(s). Dar à obra o público que esta, de si, solicita, mas que, sem a mediação crítica, corre o risco de não encontrar” (DIAS, 2004).

Na verdade, atualmente, a função do crítico vai muito além da mediação entre a obra e seu público. Exigem-se também os critérios da diversidade e da interculturalidade:

Defendo a importância de um crítico que saiba transitar por fronteiras culturais e não seja necessariamente especialista em uma cultura nacional (…). Estou interessado no crítico de cultura e de arte não como especialista em uma linguagem, mas como quem cruza as fronteiras das linguagens. Não [um] mero escritor de resenhas, que descreve, informa o que viu, leu, escutou; mas aquele que dialoga, que tem gosto, opinião, que intervém, que faz apostas (…). (LOPES, 2010, p. 21)

Sob esse aspecto, e retomando a repercussão que se faz hoje, da literatura em diversos sites, especialmente no Youtube, podemos considerar a crítica como exercício de alteridade e empatia, no qual o leitor vira crítico e às vezes até autor, estreitando os laços com o escritor da obra original e com a obra em si. Aliás, nesse contexto, as fanfictions representam um ciclo completo, pois, reescrevendo ou continuando um livro, um filme ou uma série, os leitores/autores também atuam como críticos. Transitando por uma via de mão dupla, os autores de fanfiction desempenham dupla função: de consumidores e de produtores. Esse perfil diferenciado corresponde ao que hoje chamamos prosumer, neologismo que faz uso dos termos producer (produtor) e consumer (consumidor). De fato, os leitores, hoje, não apenas escrevem textos literários (que depois são criticados por outros internautas). Eles também publicam suas críticas (resenhas escritas ou em formato de áudio), que, por sua vez, depois podem (ou não) receber as curtidas de seus seguidores.

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Outra questão associada à crítica diz respeito à dicotomia produção/reprodução, que traz à tona a discussão acerca dos prejuízos e benefícios de se usar a teoria literária para dar respaldo ao texto analítico.  O escritor italiano Italo Calvino faz referência a esse assunto na Introdução da obra Por que ler os clássicos? Em meio a essa reflexão, o autor italiano afirma que devemos fazer críticas sem modelos, desencorajando a pesquisa prévia, feita apenas com a finalidade de escrever o texto crítico:

Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. (CALVINO, 1993, p. 12)

Sem dúvida, o conselho de Italo Calvino ajuda a evitar o risco da reprodução de ideias de modo (in)consciente e sistemático, até porque essa consulta que alguns procuram fazer, antes de produzir algo próprio, pode sinalizar insegurança e, em certo sentido, revela aquele velho complexo de colônia, que mantém seus adeptos na zona de conforto da reprodução (e não da criação). Podemos complementar isso, retomando a referência que Ligia Chiappini faz a uma reflexão feita pelo professor Antonio Candido. Ela conta que Candido, em palestra comemorativa dos quarenta anos de teoria literária, considerou um erro o fato de ele ter dado mais importância à pós-graduação do que à graduação (CHIAPPINI; FLEISCHMANN, 2003, p. 168), como se tivesse negligenciado inconscientemente uma etapa importante na formação dos alunos, na qual a crítica e a pesquisa são treinadas, para se desenvolverem depois, nos níveis que competem à pós-graduação.

Esse ressentimento do mestre Antonio Candido não deixa de ter fundamento, se retomarmos a taxonomia de Bloom, publicada em 1956. A proposta relaciona alguns verbos às competências dos alunos, resultando em uma escala de desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, foram estabelecidos seis níveis, em ordem progressiva: 1) conhecimento; 2) compreensão; 3) aplicação; 4) análise; 5) síntese; e 6) avaliação (BLOOM, 1956). Conforme Bloom, quando privilegiamos a aplicação, ainda nos mantemos presos à base (se usarmos a pirâmide como modo figurativo de interpretar essa escala). Portanto, aplicar significa apenas reproduzir, como uma espécie de tentativa de comprovar a compreensão, obtida no nível 2 da cognição. É preciso ir além e tentar oscilar entre os níveis 4 e 6, como modo de problematizar a posição superior da síntese, afinal, a síntese, tal como a aplicação, apenas duplica o pensamento, sem possibilitar que o autor do resumo possa ir além do modelo dado pelo texto original.

Aliás, aproveitando o contexto do ensino, cumpre salientar que, de acordo com Gumbrecht, a matéria que conhecemos como Metodologia de Ensino da Literatura deveria se chamar Metodologia de Ensino com Literatura (GUMBRECHT, 2019b). De fato. E isso, de certa forma, já ocorre. A título de exemplo, podemos citar conferências recentes, que trataram do tema A literatura contra o ódio. Há alguns anos, a PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) vem promovendo palestras que tratam desse assunto. Em 13 de abril de 2018, o autor convidado para falar sobre o assunto foi o moçambicano Mia Couto. Mais recentemente, em 24 de setembro de 2019, o orador foi o italiano Nuccio Ordine. Sabemos que o realce ao aspecto social das artes não é algo novo. Entretanto, é salutar que isso seja retomado, de tempos em tempos, para combater algumas questões urgentes, que se refletem no comportamento e nas relações interpessoais. Conforme Antonio Candido:

A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
(…) a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. (CANDIDO, 2019)

Sendo assim, levando em conta a postura crítica da própria literatura e a função da crítica, de aproximar obras e leitores, muitos autores afirmam a permanência (e não o fim) da crítica:

Longe de podermos dizer que a crítica literária está prestes a desaparecer, temos de considerar como as novas circunstâncias vêm alterando suas manifestações. E as mudanças (…) apontam (…) para sua proliferação ilimitada em novos meios, com novas configurações e possibilidades. (JOBIM, 2012, p. 155)

Jobim, acertadamente, menciona a adaptação como necessária, em função do surgimento de algumas mídias e da ênfase dada àquelas que já existiam. No entanto, em termos de conteúdo, podemos afirmar que o contexto atual também exige o exercício constante e ininterrupto da crítica, afinal, de acordo com Benedito Nunes, momentos de crise não devem ser encarados apenas como sinal de “catástrofe”. Crise é também “incerteza acerca do que fazer agora e do que virá depois” (NUNES, 2009, p. 66). Flora Süssekind reforça esse pensamento, ao pontuar que a crítica é necessária, principalmente quando “os tempos políticos se mostram outros, e uma homogeneização impositiva parece barrar as cisões necessárias à experiência crítica do próprio tempo, quando já não se constituem, com facilidade, margens articulatórias da resistência” (SÜSSEKIND, 2013, p. 303).

Ainda sobre o dilema da morte ou da permanência da crítica, deve ficar claro que, apesar da ideia de perenidade, não se deve afastar a necessidade de mudança. Sobre isso, Gumbrecht enfatiza que, “em geral, os humanistas não têm pensado o suficiente sobre as funções que seu trabalho pode e deve cumprir fora das universidades. Uma mudança de atitude parece urgente aqui” (GUMBRECHT, 2019c, tradução nossa). Essa mudança de postura a que o autor se refere diz respeito ao protagonismo como reação à passividade. Com base em Humboldt, o crítico ressalta que “as pessoas, nas universidades, devem produzir novas perguntas e mais problemas” (GUMBRECHT, 2014, p. 123, tradução nossa). Mais adiante, no mesmo texto, o teórico completa essa ideia, ao mencionar que o “pensamento de risco” (GUMBRECHT, 2014, p. 126, tradução nossa) é indispensável ao profissional da área de Humanas, pois só dessa forma podemos trabalhar “contra o esclerosamento das sociedades” (GUMBRECHT, 2014, p. 128, tradução nossa).

A partir desses aspectos, constata-se que não é necessária apenas uma mudança de postura do profissional de Humanas. Mais do que isso: é fundamental que o contexto sociopolítico seja adequado, desenvolvendo-se em sintonia com essa significativa alteração e garantindo a liberdade de pensamento e de criação: “(…) o Estado não tem o direito de intervir em nenhum assunto intelectual” (GUMBRECHT, 2014, p. 124, tradução nossa), já que, em regra:

(…) supõe-se que a universidade seja a instituição que o Estado promove, com o fim de que se produza um conhecimento surpreendente, com o fim de que surjam pontos de vista nunca antes produzidos, o que, por definição, não ocorrerá se for permitido que o Estado intervenha. (GUMBRECHT, 2014, p. 124, tradução nossa)

Sim, criticar é agir, é assumir a função de sujeito social. Em outras palavras, a crítica deve resultar em “experiências de ajuizamento que ponham em teste simultaneamente os próprios contextos de atuação, os seus códigos e categorias operacionais, e que possam exercer interferência ativa e transformadora numa compreensão crítica do próprio presente” (SÜSSEKIND, 2014, p. 67).

Mais do que ofício ou entretenimento, a criação e a leitura literárias são exercícios constantes, que podem ser conscientes ou não, mas que sempre nos ligam com o outro e com o mundo à nossa volta (Fig. 2).

As razões da literatura 2
Figura 2: Livros impressos (que sejam eternos!). Imagem disponível em: https://www.culturagenial.com/classicos-da-literatura/

Nas palavras de Vargas Llosa:

(…) é preciso repetir sem trégua, até que as novas gerações se convençam do seguinte: a ficção é mais do que entretenimento, mais do que um exercício intelectual, que aguça a sensibilidade e desperta o espírito crítico. É uma necessidade imprescindível para que a civilização continue existindo, renovando-se e preservando em nós o melhor da humanidade. Para que não retrocedamos à barbárie da falta de comunicação e a vida não se reduza ao pragmatismo dos especialistas, que veem as coisas em profundidade, mas ignoram o que as rodeia, o que as precede e o que lhes dá continuidade. (LLOSA, 2015, tradução nossa)

A literatura é essencial ao aprimoramento diário. A cada livro, somos mais e melhores!

REFERÊNCIAS DE AS RAZÕES DA LITERATURA:

BLOOM, B. S. et al. Taxonomy of educational objectives, v. 1. New York: David Mckay, 1956.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CANDIDO, A. Direitos humanos e literatura. Disponível em: https://bibliaspa.org/wp-content/uploads/2014/09/direitos-humanos-e-literatura-por-antonio-candido.pdf. Acesso em: 9 out. 2019.

CEYLÃO, F. Piada em debate. Helena, n. 6, Curitiba, primavera de 2017, p. 88-99.        

CHIAPPINI, L.; FLEISCHMANN, U. Entrevista com Alfredo Bosi. Iberoamericana, v. III, n. 10, [s/l], 2003, p. 155-170.

DIAS, S. Crítica e arte: a função da crítica. Disponível em: www.ciberkiosk.pt/ARTES/sousadias.htm. Acesso em: 5 out. 2004.       

GUMBRECHT, H. U. ¿Una universidad futura sin Humanidades? Inmediaciones de la comunicación, v. 9, n. 9, Montevideo, 2014, p. 117-141.

_____. Leitores não-profissionais de literatura e seus desafios. Minicurso ministrado no XI Seminário de Pesquisa do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade, Curitiba, 20 set. 2019a.

_____. [Sem título]. Reunião do Grupo de Pesquisa em Teoria Literária e Crítica Cultural (do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade) com Hans Ulrich Gumbrecht, Curitiba, 20 set. 2019b.

_____.[Sem título]. Comunicação via e-mail entre Hans Ulrich Gumbrecht e Verônica Daniel Kobs, no período de 14 a 30 out. 2019c.

JOBIM, J. L. Crítica literária: questões e perspectivas. Itinerários, n. 35, Araraquara, 2012, p. 145-157.

LOPES, D. Notas sobre crítica a paisagens transculturais. Cadernos de Estudos Culturais, v. 2, n. 3, Campo Grande, 2010, p. 21-28.

LLOSA, M. V. Elogio de la lectura y la ficción. Disponível em:

http://elpais.com/diario/2010/12/08/cultura/1291762802_850215.html. Acesso em: 23 jun. 2015.

NUNES, B. A clave do poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PORTO, T. M. E. As tecnologias de comunicação e informação na escola. Relações possíveis… Relações construídas. Disponível em: http://www.scielo.br/ pdf/rbedu/v11n31/a05v11n31.pdf. Acesso em: 24 set. 2016.

SILVA, E. R. da. Nu desde o nada: o perigo da nudez como possibilidade estética. Disponível em: http://teorialiterariauniandrade.blogspot.com/2017/11/nu-desde-o-nada-o-perigo-da-nudez-como.html. Acesso em: 25 jun. 2020.

SÜSSEKIND, F. A crítica como papel de bala. In: CORDEIRO, R. et al. (Orgs.). A crítica literária brasileira em perspectiva. Cotia: Ateliê, 2013, p. 299-305.

_____. Que eficácia pode ter: adaptabilidade e resistência? In: _____; PEDROSA, C; DIAS, T. (Org.). Crítica e valor. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2014, p. 49-67.

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