Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Trending no Recorte Lírico

Anúncio

Dibrinha: o jogo do improviso e da liberdade

No princípio a bola era o sol. Os jogos de futebol entre os Maias, quase dois mil anos atrás, eram uma homenagem ao deus solar

No princípio a bola era o sol. Os jogos de futebol entre os Maias, quase dois mil anos atrás, eram uma homenagem ao deus solar e ter a posse da pelota era estar com o astro-rei – quem sabe de lá tenha vindo a expressão “a bola queima”. O fato é que o futebol estava atrelado à religião, tanto que, ao fim da partida, após reclamações com o árbitro e trocas de camisa, o capitão do time perdedor era oferecido em sacrifício aos deuses.

Enquanto isso na Europa medieval, de maior parte cristã, o jogo passou a ser de reino contra reino. Pelas ruas inglesas, habitantes de uma cidade tentavam conduzir a bola até a porta da igreja da cidade adversária. Não existia uma separação definida entre jogador e público, de modo que participava quem quisesse participar.

Essa maneira de jogar futebol causava lesões mais graves que a panturrilha do Romário na Copa da França, como o fato de um dos atletas poder estar, tranquilamente, carregando sua cotidiana faquinha na bainha e se deparar com o jogo, usando-a – ou um punhal, variava – para roubar a bola ou gerar hematomas. “Punhalada com responsabilidade, dando alegria à torcida maravilhosa, graças ao rei”, eles diziam na entrevista pós-jogo. O futebol estava atrelado às monarquias, quase sempre absolutas.

Anúncio

Os anos se passaram e decidiu-se organizar a bagunça. escreveram regras no século XIX e de repente surgiu a baliza, a FIFA, os clubes, os torneios organizados e o SportingBet. Hoje, os maiores e mais caros campeonatos de futebol do mundo estão acessíveis por um clique. De repente chegam às nossas telas super-homens em super-arenas praticando um esporte cada dia mais distante do horizonte de expectativas das nossas pernas. Talvez seja isso que incentive uma geração inteira de adolescentes a se sentir mais próxima do jogo, pelas escalações arriscadas no Cartola F.C. do que pela tentativa de igualar seus ídolos. Hoje, paixões à parte, o futebol está atrelado ao poder econômico, às burocracias e ao desenvolvimento físico.

Mas eis que saio à rua, numa tarde de sábado na Baixada Fluminense, e vejo quatro crianças brincando de bola despretensiosamente. Enquanto uma está com a redonda, as outras quatro vão atrás dela e são dribladas. Para onde? Com qual objetivo? Em que direção? Procuro demarcações de campo ou traves, chinelos que sejam – sim, o mundo nos torna caretas – e não encontro. Pergunto: quem é o artilheiro aí? O detentor da bola me responde: aqui não tem gol, tio, é dibrinha. O detentor da bola é magérrimo e joga descalço.

Anúncio
Dibrinha: o jogo do improviso e da liberdade
As novas gerações geralmente pendem ao drible e “despreza” a objetividade do gol. Efeito Neymar? (Foto: Edição Brasil/Reprodução)

Eu me sento para observar e aprender. Na Dibrinha a única regra é ficar com a bola. É logico que para isso você precisa driblar os adversários. Podemos dizer que, se o futebol entre Maias pagãos era uma homenagem ao Sol, promotor da vida, e no Medievo era de reino contra reino, nestes tempos de pós-modernidade e individualismo, o que te define é o que você faz e a visão que os outros têm acerca do que você faz. E se você consegue driblar muito e manter-se com a bola, você é bom, meu irmão, você é o dono do sol, porque no teu pé nem queimar ela queima.

É claro que, assim como algumas autoridades tentaram proibir o futebol na Idade Média por causa da violência, algumas mães exercem essa soberania na rua. Sobretudo porque, em muitos aspectos, a Dibrinha pode descambar para a violência – não com punhais e faquinhas (pelo menos não que eu saiba), mas quando jogada em sua variação mais perigosa, o “Ovinho malha” (ovinho: colocar a bola entre as pernas do outro; malha: agredir o outro). Nessa versão, o garoto me explica, a agressão é legalizada. “É a regra mais legal, tio, tomou caneta, apanha”. A Fifa que se cuide.

O futebol é o esporte mais popular do mundo e o sentimento de jogá-lo na rua jamais dependerá de seguir as regras impostas por federações localizadas a milhares de quilômetros. As crianças improvisam o tempo todo, inventando jogos como Dois toques, Toque livre, Cruzamento, Chute a gol, Rebatida, Golzinho, Altinha, Cascudinho, Nota, Gol a gol, e muitos nomes de modalidades alternativas que certamente variam regionalmente no Brasil e que um dia estarão nas Olimpíadas, estarei vivo e verei. Contudo, nenhum desses jogos carregam tanto de liberdade quanto a Dibrinha, que para ser jogada só se precisa de duas coisas: a bola e o desejo pela bola.


LEIA TAMBÉM: As idiossincrasias do gênero feminino na obra de Clarice Lispector [1]

0 0 votos
Classificacao do Artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Giro Recorte Lírico

Celebrity: Um K-Drama Divertido, Porém Superficial
01 jul

Celebrity: Um K-Drama Divertido, Porém Superficial

A série "Celebrity" da Netflix é um verdadeiro deleite para aqueles que adoram criticar os influenciadores. Se você acredita que

O Monstro que Vive em Mim: Final Explicado | Hannah Matou a Criatura?
02 out

O Monstro que Vive em Mim: Final Explicado | Hannah Matou a Criatura?

"O Monstro que Vive em Mim", dirigido por Anna Zlokovic, é uma intrigante obra de terror psicológico que nos imerge

10 dos livros mais românticos já escritos
10 jul

10 dos livros mais românticos já escritos

10 dos livros mais românticos já escritos - Abandonem toda esperança de um final feliz, vocês que entrarem aqui. Se

6 dicas para melhorar sua escrita criativa
05 jan

6 dicas para melhorar sua escrita criativa

A escrita criativa é uma habilidade importante e pode ser muito gratificante. Se você está procurando melhorar sua escrita criativa,

FLIPOÇOS virtual
14 out

FLIPOÇOS virtual

A charmosa feira literária ganha nova versão em 2020 Realizada desde 2006, a FLIPOÇOS - Feira do livro de Poços

Criaturas Impossíveis: A Disney pagou milhões pelo “novo Harry Potter”, mas será que a gente compra?
23 nov

Criaturas Impossíveis: A Disney pagou milhões pelo “novo Harry Potter”, mas será que a gente compra?

Comecemos com uma verdade inconveniente, caro leitor: a cada dois anos, a indústria editorial decide que encontrou o "novo Harry

Posts Relacionados

0
Adoraria saber sua opinião, comente.x