[Conto] O que Zuleica via

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Por Thiago André de Lacerda¹

Os tamancos de couro, o coque na cabeça e a saia jeans até o tornozelo – a aparência habitual dela. O livro da capa preta nunca faltava debaixo do braço. A sua fama era grande em nossa cidade, há tempos. Não mais, atualmente. Só que os trajetos tão característicos – a voz imponente e o olhar sempre caçando algo – em nada mudaram com o passar dos anos.

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– Sinto o odor. – Ela dizia, em alta voz, no meio da rua. – Sinto o odor dele! Ele passou por aqui! Ele esteve aqui! Carnicento!

Não era preciso perguntar quem. A resposta, para os conhecidos, era bastante evidente. As crianças da cidade, inocentes dos hábitos da velha crente, não questionavam. Temiam. Mas quando a irmã clamava em alta voz o nome (é o Cramulhão!), não havia quem não temesse. As lembranças dos mais velhos retornavam. E uma tenebrosa sensação perdurava, mesmo horas após a saída da mulher.

Em outros tempos, eram diferentes as igrejas de nossa cidade. E uma irmã como Zuleica – com a capacidade de enxergar, a quilômetros de distância, a compleição dos pequenos servos do Maligno – era bastante admirada pelos seus dons. Ela expulsava demônios, desmascarava demônios, encontrava demônios, humilhava demônios, arregaçava demônios. E o povo se dividia – uns incrédulos, outros eufóricos. Só que não havia outra: quando Zuleica aparecia no culto, apareciam também uma multidão de capirotos. Quem atraia quem, era o que ninguém sabia responder.

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Os discos infantis não sobreviviam nas mãos de Zuleica. Botava as músicas ao inverso, encontrava adoração ao satânico, assustava os pais e queimava os discos – em meios às lágrimas dos pequeninos. Os adolescentes ficavam pálidos de horror nos cultos com a presença de Zuleica. A famosa irmã subia no púlpito e selecionava, dentre os jovens rapazes, quais ela desmascararia os pecados. Os rapazinhos, naquela conhecida fase da puberdade, eram humilhados na frente de toda a congregação. A irmã dizia até a hora e o dia em que o menino havia caído na tentação – para desespero do moleque e vergonha da família. As mocinhas desinibidas, sem nenhuma vergonha de serem expostas, mascavam chiclete e olhavam com deboche para a irmã. Zuleica não se abatia. Tomava o tamanco de couro e arremessava na cara da debochada. E os pais que não se atrevam a me contestar, a irmã gritava enérgica com os choros das meninas, que o castigo é para educação dos seus filhos!

– Se eu não educo, se não mostro o caminho, o Cramulhão vem e mostra no meu lugar! – Ela dizia, se justificando depois, para os observadores atônitos.

A relação com os servos do Lá-de-Baixo era o que mais impressionava os outros crentes. Na rua, ela batia a Bíblia contra o vento – toma essa, Insensato! Na igreja, ela pisava e pisava em invisíveis baratas pelo chão – pequenos atentados enviados pelo Ruinzão! Na casa dela, quem se atrevesse a visitar ficaria chocado: em todo canto um diferente: no sofá (aí não, olha o Cheiro-Velho): na cozinha (cuidado, o Boca-Torta fica aí): no quintal (veja bem, olha o Educado): no banheiro (vixe, aí tem o Dente-Podre): no quarto (olha bem, aí tem o Maludo). Isso quando a própria Zuleica não metia a mão na cara da visita (tinha uma baratinha satânica no seu rosto, ela se desculpava, matei a atentada…), espantando o convidado, que saía num espírito de completo ultraje.

– Eu não tenho culpa! – Ela se explicava depois para os conhecidos. – O Senhor Deus me escolheu para ter esse dom: ver as carniças do mundo espiritual! Vou fazer o quê? As pragas tão em todo canto! E se tão lá em casa é porque o pai deles, o Anjo-Feio, tá querendo me matar! Vixe! Já tentou tantas vezes! Mas não vai não, não vai não! O meu Senhor é mais forte que todos eles. E me dá força! Meto a coça neles toda noite! Ha! Duvida? Os escravos do Cramulhão não têm força comigo não!

O que encafifava os crentes de nossa cidade era como a mulher tinha uma relação tão próxima com as tais pragas do submundo. Toda tragédia era prevista. Ela via antes de todos. E nunca se admirava com nenhuma notícia podre ou ruim.

– Ficou sabendo que o irmão Eduardo traiu a esposa com a filha do seu Mathias?

– Vixe! Dessa eu já sabia! A Sacana comentou que tava nessa tramoia! Eu ainda avisei pra sonsa ficar de olho no marido. Ninguém me escuta…

– Ficou sabendo que irmão Elizeu espancou o namorado da prima do pastor Lucas?

– Nossa! Essa daí é antiga! O Fedelho há tempos que tá armando essa pro Lucas. E não é novidade! E não é novidade pra ninguém!

– Ficou sabendo que a sogra do irmão Fernandes jogou água fervendo na vizinha?

– Uau! Essa quase me pegou de surpresa! Mas o Enrabado tá nessa tem anos, minha filha. Sabia que daria em tragédia. Não digam que não avisei…

Ninguém recebia com antecedência os supostos avisos da irmã – mas ela não somente jurava ter conhecimento dos casos, como também jurava ter alertado todos os envolvidos. Somente Luana sofria com os avisos prévios da sogra. Casada com o filho da famosa crente, não havia um dia do ano em que a jovem não fosse atormentada com um vaticínio fatal – tenho uma profecia pra você, amanhã o Cramulhão te pega! Tenho uma profecia pra você, de amanhã você não escapa do Metidão! Tenho uma profecia pra você, esse é o mês que o Rato-Imundo vai te engolir! Toma tento, sua pecadora!

Luana se aterrorizava, no começo. Com o tempo, ela própria passou a ignorar as revelações da sogra. E não somente ela. Os anos foram passando. E as igrejas mudaram também. Revelar os pecados na hora do culto espantava os jovens da congregação. Meter o tamanco na cara das mocinhas – mesmo que merecidamente – também. Ninguém mais acreditava em tanto demônio e nem gostava de ver a mulher expulsando essa legião a todo tempo. Práticas do passado. E assim, a velha irmã Zuleica passou de maluca com dons especiais para simplesmente doida-varrida. Ela permanecia insistindo, porém. Os demônios estão por toda a parte. E é preciso dar mais atenção a eles, ela afirmava.

– Os tempos mudaram. – O pastor Lucas dizia, tentando consolá-la após a proibição de expulsão de demônios na igreja. – Não se faz mais essas coisas. Esses negócios de demônios é coisa do passado, dos nossos tempos. Hoje em dia não tem mais disso. Sabe, aqui na nossa igreja os jovens estão todos calvinistas. É a nova moda. Você conhece os calvinistas? Eu conheci os calvinistas pela internet. Eles são racionais. E não acreditam em demônios, Zuleica! Nem os calvinistas e nem nenhum crente acreditam mais nessas coisas. A igreja está evoluindo, ficando moderna. Ficando mais racional. Precisamos ser racionais, Zuleica. Você precisa deixar essas crenças do passado para trás, tá me entendendo?

– Eu conheço um que se chama Racional. Passa o dia lá em casa me atazanando com conversa mole! – O pastor Lucas balançava a cabeça rindo. – É. Acho que não tem mesmo mais espaço para mim nessa igrejinha. – Ela disse e deu um tapa no vento, ao seu lado. – É a Tatiana-Quebradeira. A mais nova enviada pra tentar acabar comigo. Só que não vão conseguir! Não vão conseguir!

Apesar de decidida a mudar de igreja, a irmã não encontrou lugar que se adequasse. Em todos os templos havia uma proibição tácita em relação aos supostos e sinistros dons de Zuleica. Numa visita a certa igreja, recentemente construída em nossa cidade, dessas com paredes pretas e refletores no teto, a irmã foi verdadeiramente humilhada: após dizer que o ambiente estava infestado por mais de cinquenta demônios diferentes, o conselho da igreja (formado somente por jovens) decidiu pela proibição, por tempo indeterminado, de Zuleica nas dependências da congregação. A velha crente não se incomodou. Ela já não mais se incomodava, militava por causa perdida. Ao andar pela cidade, ela nem se impressionava com os vários capetinhas sapateando pelas ruas, até abraçados com alguns crentes. Zuleica nunca duvidou de seu dom. Ela tinha certeza do que via. E eles sabiam que ela os via. E sabiam que a irmã nada poderia fazer para impedi-los de dominar uma cidade que, como a casa dela, já havia se tornado território deles.


¹Thiago André de Lacerda é professor de artes. Graduado em artes cênicas e mestrando em literatura pela Universidade de Brasília (UnB).

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